28 outubro 2010

Sankon Zazen Setsu

Sankon Zazen Setsu
Três tipos de praticantes Zen

Keizan Zenji

Aquele cujo zazen é do tipo mais profundo não tem interesse em como os Budas podem surgir no mundo atual. Ele não especula sobre as verdades que não podem ser transmitidas nem pelos Budas e Ancestrais. Ele não tem nenhuma doutrina sobre “todas as coisas serem expressão do self” porque ele está além de “iluminação” e “delusão”. Uma vez que suas visões nunca partem de ângulos dualistas, nada o obstrui, mesmo quando distinções aparecem. Ele apenas come quando tem fome. Ele apenas dorme quando está cansado.

Aquele cujo zazen é do tipo médio abandona tudo e rompe todas as amarras. Através do dia ele nunca está ocioso e assim cada momento da vida, cada respiração, é a pratica do Dharma. Ou então ele pode concentrar-se em um koan, olhos fixos, com o olhar em um ponto como a ponta do nariz. Considerações sobre vida e morte, ir e ficar não são vistas em sua face. A mente da discriminação não pode jamais penetrar a mais profunda imutável verdade, nem entender a Mente-de-Buda. Uma vez que não há pensamentos dualistas, ele é iluminado. Do mais distante passado até o presente momento, a sabedoria é sempre brilhante, límpida e reluzente. Todo o universo através das dez direções é subitamente iluminado por sua fisionomia, todas as coisas são vistas em detalhe em seu corpo.

Aquele cujo zazen é apenas comum vê as coisas de todos os lados e liberta-se de boas e más condições. A mente naturalmente expressa a Verdadeira Natureza de todos os Budas porque Buda está exatamente onde seus pés estão. Assim, ações incorretas não surgem. As mãos se unem no mudra da realidade e não estão atadas a nenhuma escritura. A boca está firmemente fechada, como se os lábios estivessem selados, e nenhuma palavra de doutrina é dita. Os olhos nunca estão plenamente abertos nem fechados. Nada é visto do ponto de vista da fragmentação e palavras boas e más não são ouvidas. O nariz não discrimina os cheiros como bons ou maus. O corpo não se apóia em nada e toda a delusão cessou. Uma vez que delusões não perturbam a mente, nem pesar nem júbilo aparecem. Exatamente como uma escultura de madeira de Buda, tanto a substância quanto a forma são verdade. Pensamentos mundanos podem surgir, mas eles não perturbam porque a mente é um espelho brilhante, sem traços de sombras.

Os Preceitos surgem naturalmente do zazen, sejam eles os cinco, oito ou os Grandes Preceitos do Boddhisattva, os Preceitos monásticos, as três mil regras de conduta, os oitenta mil Ensinamentos ou o supremo Dharma dos Buddhas e Ancestrais Despertos. Nenhuma prática, definitivamente, pode ser equiparada ao zazen.

Se um só mérito pode ser alcançado com a prática do zazen, é mais vasto que a construção de cem, mil ou incontáveis mosteiros. Pratique shikantaza, apenas sentando-se incessantemente. Fazendo isso, nos libertamos do nascimento e morte e realizamos nossa própria Natureza-de-Buda que está escondida.

Em perfeito bem-estar, vá, fique, sente e deite-se. Vendo, ouvindo, entendendo e sabendo são a manifestação natural da Verdadeira Natureza. Do princípio ao fim, mente é mente, além de argumentos sobre conhecimento e ignorância. Apenas faça zazen com tudo aquilo que você é. Nunca se perca disso ou distancie-se disso

26 outubro 2010

"A torrente da montanha corre fundo, por isso a concha é longa" de um eremita.

Um monge contruiu uma ermida aos pés do Monte Hsue-feng e lá viveu muitos anos praticando a meditação, mas sem raspar a cabeça.Tendo feito uma concha de madeira, o monge retirava e bebia água de uma torrente da montanha.

Um dia, um monge do mosteiro que ficava no alto da montanha visitou o eremita e perguntou, "Qual o significado de Bodhidharma ter vindo do Oeste?" O eremita respondeu, "A torrente da montanha corre fundo, por isso o cabo de uma concha de madeira tem que ser adequadamente comprido". O monge relatou o episódio ao mestre do templo de Hsue-feng, que declarou, "Ele parece uma personagem estranha, talvez uma anomalia. Acho melhor ir logo e verificar eu mesmo".

No dia seguinte mestre Hsue-feng foi ver o eremita e carregou uma navalha e se fez acompanhar de um assistente. Assim que se encontraram, ele disse, "Se você puder exprimir o Caminho, não raspo sua cabeça". Ao ouvir isto, o eremita a princípio ficou sem fala. Mas, em seguida, usou a concha para apanhar água para lavar sua cabeça , e Hsue-feng raspou a cabeça do eremita.

Comentário em verso:

Quando alguém pergunta o significado de
Bodhidharma ter vindo do Oeste,
É que o cabo de madeira da
concha é longo, e a torrente da montanha
corre fundo. Se você quiser
saber o imenso significado disso,
espere o vento soprar nos
pinheiros e abafar o som das cordas do koto.

Fukanzazengi - 12º comentário de Coupey


Já que estes sábios de antanho eram tão diligentes, como podem os praticantes do dia 
presente deixarem de praticar o zazen?

Os "sábios de antanho", aqui, são os mestres da transmissão, os patriarcas. Esses sábios,  ou "santos", não têm nada a ver com os santos da religião católica. O significado da palavra santo é completamente diferente. No budismo, o "santo", pode ser um homem vivo.

Dizemos que somos todos santos, aqui e agora. Todos temos o satori de buda. Para o Mestre Dogen, os "sábios de antanho" foram, entre outros, os patriarcas Bodhidharma, Eno, Obaku, Hyakujo, Rinzai... Eis uma passagem do Shobogenzo, onde Mestre Dogen fala dos mestres que foram fundadores, pilares desse ensinamento:

"Obaku era um buda antigo, além do tempo, muito superior a Hyakujo e muito mais fino que Baso. Rinzai, em comparação, era bem insignificante".

Geralmente, não gostamos de ouvir alguém falar de sábios de antanho em termos de comparação, de julgamento de categoria, sobretudo quando aprendemos, desde os primeiros dias de prática, que não é preciso comparar, julgar, estabelecer categorias...Além disso, em muitos dojos pertencentes a outra linhagens diferentes da nossa, não se cita esse tipo de passagem. Eu acho uma pena, pois penso que podemos ensinar por todos os meios. Mestre Deshimaru, por exemplo, nçao parava de nos comparar uns aos outros. Quantas vezes nos dizia, "Você é o número um!” Ele às vezes colocava o polegar para cima, outras, para baixo, "Negativo! Antes, você era o número um, agora você sequer figura na lista...!" Muitas pessoas de fora ficavam chocadas com esse tipo de comportamento e essa maneira de ensinar. 

O Mestre Deshimaru regularmente publicava no Boletim Zen uma lista de uns cinquenta nomes com todas as mudanças de "categorias" em curso... Então, segundo os dias, subia-se ou descia-se naquela classificação. E seria bonito manter um ar indiferente, dizer que estávamos além dessas "bobagens dignas de escola maternal" e, de fato, não estávamos numa... Levávamos tudo isso muito a sério. Não dormíamos à noite quando ganhávamos um polegar para baixo, e dormíamos muito bem quando o polegar era para cima. Ficávamos muito irritados por conta disso, sobretudo os que estavam no meio da lista. Os que se achavam no fim da lista se zombavam e os que estavam no topo pareciam também fazer troça, mas por dentro, era diferente. Mestre Deshimaru, na realidade, brincava com a ignorância humana, com nossa ignorância e esse hábito que temos de ficar todo o tempo nos comparando, nos medindo uns contra os outros, nos classificando em categorias.

Então segundo Mestre Dogen, Obaku era "superior' a Hyakujo", "mais fino" que Baso e pertencia a uma categoria mais elevada que Rinzai. Era o santo dos santos. Ele vivia em plena época da repressão ao budismo pelo Imperador. Mas o zen não era particularmente visado porque aqueles monges nada possuíam, nem dinheiro nem templos, mas apenas velhos barracos onde praticavam zazen. E todo o modo, Obaku debochava bastante da repressão:

"O príncipe Senso então praticava com Obaku. Um dia em que Obaku fazia sampai no dojo para a 
estátua de Buda, Denso lhe pergunta:
- Porque você se prostra diante dos Três Tesouros? [Precisemos que Senso era conhecido por sua forte crença no desapego, mesmo em relação aos Três Tesouros.] Para que servem os rituais quando estamos desapegados de toda noção de despertar?
Obaku lhe dá uma bofetada, tap!
Por conta disso, Senso, com a face corada, grita com a voz indignada:
- Então é assim que se manifesta um santo, um ser desperto?!
Obaku lhe dá uma segunda bofetada, tap!
- Verdadeiramente, diz Senso, você é um ser grosseiro!
Obaku lhe desfere uma terceira bofetada - tap! - e lhe retruca:
- E essa, lhe parece grosseira ou refinada?"

Quando se comenta que Obaku tinha o dobro da estatura de um homem normal, pode-se compreender que, a cada bofetada, sua mão cobria inteiramente a face de Senso... Em todo o caso, graças à força dessa última bofetada, diz-se que Senso teve um grande satori.

Obaku não era, naquela época, um mestre oficial, mas um simples discípulo. Ele era shuso, isto é, o primeiro monge do dojo de Hyakujo, e Senso era seu condiscípulo. Assim, levando-se em conta que Obaku não era o mestre de Senso e que este não era nada menos que o filho do imperador da China (ele deveria em seguida suceder-lhe no trono), distribuir-lhe bofetadas não era um bom meio de obter os favores da hierarquia, o que mostra que Obaku não era um monge de dimensão comum. E o "santo Obaku" que dá bofetadas em Senso para tentar despertá-lo, não se comporta verdadeiramente como um santo cristão.


A propósito de Rinzai, segundo a categorização de Dogen, (“bem insignificante”) – poder-se-ia dizer “de um nível pequeno” – ele teve seu satori com o Mestre Taigu (cujo nome quer dizer grande idiota) quando este último lhe deu uma bofetada com toda a força... A experiência de Rinzai com Taigu tornou-se muito célebre. É o caso de satori mais célebre na história do zen. Ainda aí, não se acha nenhum santo cristão como esse “Grande Idiota”...

Eu poderia citar muitos outros “santos” de nossa tradição zen: Eka, que se tornou açougueiro, Doshin, que dormia com as vacas. Ou ainda evocar Eno, o sexto patriarca que rasgava os sutras (existe um quadro famoso onde se pode vê-lo em plena ação [que ilustra esse comentário]) – não se pode imaginar um santo cristão rasgando a Bíblia... Hoje, esse gesto de Eno seria tomado como vandalismo, mesmo no zen. Eno, ao rasgar os sutras, nos diz que a verdade não se encontra no papel mesmo que, apesar disso, seja importante compreender o que nele está escrito.