25 outubro 2009

RENUNCIANDO AO EU-EGO

Por exemplo, algumas pessoas estão orgulhosas de suas compreensões, e acham que estão ricamente agraciadas com a sabedoria do Buda.

A despeito do quão maravilhosamente vocês possam explicar o Budismo e o zazen, não importa o quanto vocês tenham aprendido de outros sobre a iluminação e o vazio, se não for algo verdadeiramente de vocês, isto é nada. Apenas por pronunciar a palavra “fogo”, suas bocas não queimam, e apenas por pensar em comer, seus estômagos não se enchem. O que aprendem de outros não é o bastante.

Muitas pessoas dizem coisas assim, “Eu tive uma experiência de esquecer-me de mim mesmo, mas agora não é mais assim”. Contudo, a questão é a condição exatamente agora. A experiência passada não é a questão. Não se trata de obter um lampejo de algo como o Dharma ou o sentimento de como é esquecer o eu-ego.

Faz muito tempo, um monge Zen esqueceu-se de si mesmo ao ver uma flor. Do mesmo modo, Kyogen despojou-se de corpo e mente ao ouvir um som. Algumas pessoas ficaram muito enfermas porque ao ouvir essas histórias elas comparam suas próprias experiências com as experiências de pessoas do passado. Elas imaginam que sua condição é a mesma e tornam-se presas disto, ainda que tenham sido elas próprias que a criaram.

Associada à expressão “orgulhosas de suas compreensões”, devo mencionar a história de um monge, faz muito tempo atrás, chamado Daie, que dizia, “Tive dezoito grandes iluminações e mais umas pequenas que posso contar”. O que isto quer dizer? Todas elas, grandes ou pequenas, foram falsas, não foram genuínas. Satori não é uma coisa que acontece duas vezes. Acontece apenas uma. Em outras palavras, não é uma experiência.

Quando tomamos banho, usamos um pano para nos lavar. Quando terminamos, torcemos o pano até que não tenha mais água. Depois de certo tempo, se torcermos de novo, mais água pode sair do pano. Mesmo quando repetimos isto várias vezes, é difícil secá-lo completamente. A iluminação deve ser como um pano que foi torcido até ficar completamente seco.

Por essa razão, tanto o Buda Xaquiamuni quanto Bodhidharma, padeceram muitas dores e sofrimentos fazendo zazen. A mensagem aqui é que a prática não termina com um mero “lampejo de sabedoria”, ou depois de esquecer o ego várias vezes. Abandonar corpo e mente necessita ser feito apenas uma vez. Da mesma forma, quando se resolve verdadeiramente um koan, então deve ser possível resolver todos os outros.
(3ª parte do 2º Comentário de Harada sobre o Fukanzazengi)

16 outubro 2009

Homenagem a John Daido Loori, falecido dia 9 de outubro passado, sucessor de Taizan Maezumi

RENUNCIANDO AO EU-EGO


Do ponto de vista do Dharma, nós somos essencialmente a própria liberdade. Nós já somos liberados, um corpo completamente livre. Mas do ponto de vista do eu-ego, não é nada assim. Todos os tipos de restrições surgem por conta do eu-ego. Continuemos com o texto.

"Contudo, o fato é que se houver a menor diferença desde o começo, entre você e o caminho, o resultado será uma separação maior ainda que aquela entre o céu e a terra".

Se o eu-ego for percebido mesmo no menor detalhe, quanto mais vocês praticarem, mais vocês se afastarão do Caminho, do Dharma e do Zen. Vocês se distanciarão cada vez mais das coisas.

"Se surgir o menor pensamento dualista, perderás tua mente de Buda".
ou
"Se o menor gostar ou não gostar surge, a mente se perde em confusão".


Porque não sabemos que o caminho é essencialmente um, ficamos aborrecidos quando não gostamos de algo e mergulhamos em desejos quando gostamos de algo. Daí a expressão “se o menor gostar ou não gostar surge” (pensamento dualista).

“A mente se perde em confusão” (“perderás tua mente de Buda”) refere-se a perda e ganho ou amor e ódio, isto e aquilo, bom e mau. Isto significa ver uma coisa como duas. Estas duas coisas colidem e caem no reino dos demônios lutadores, ou asuras. Chega ao ponto em que duvidamos até mesmo do significado de nossa existência como seres humanos. Isto acontece porque não esclarecemos a natureza de nossa mente real, de nosso Eu verdadeiro, ou da Verdade. Como se diz frequentemente, a ilusão consiste em ver uma coisa como duas. É o sofrimento de dividir e comparar. Iluminação significa realizar que enquanto as coisas estão separadas, essencialmente tudo é um.

Deste ponto em diante no Fukanzazengi, Dogen escreve sobre várias precauções que se deve tomar no que diz respeito ao caminho da prática. Ele assim procede para corrigir os erros que surgem na prática de tal forma que possamos nos mover na direção correta. De qualquer modo, o objetivo primário é esquecer o eu-ego.

Todo o dia recitamos os “Quatro votos do Bodhisattva”. O primeiro voto é conduzir todos os seres do lado da ilusão para o lado da iluminação. A fim de conseguir isto, o segundo voto é eliminar todas as paixões ilusórias, por mais que inexauríveis. O terceiro voto é estudar todos os ensinamentos do Dharma, por mais numerosos que sejam. São os ensinamentos do Buda Xaquiamuni, os chamados 84.000 portões do Dharma. Finalmente, fazemos o voto de alcançar o intransponível Caminho do Buda. Este é o voto que fazemos para esclarecer o Caminho, em outras palavras, o esforço que prometemos fazer para compreender o Eu verdadeiro.

Recitamos esses versos de novo e de novo para que nossa prática não se encerre simplesmente na nossa auto-satisfação.
(1ª e 2ª partes do 2º Comentário de Harada sobre o Fukanzazengi)

08 outubro 2009

Ítaca

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.
(Konstantin Kafavis, trad. José Paulo Paes)

06 outubro 2009

VOCÊ JÁ ESTÁ NO CAMINHO


“O caminho está completamente presente exatamente onde estás,
Então do que adianta a prática?”

“Exatamente onde estás” é aqui, exatamente agora. Agora. Agora. Agora. Isto quer dizer residindo pacificamente aqui exatamente agora. Não é bom procurar o Caminho em outro lugar que não aquele onde se está exatamente agora. Uma vez que o Caminho está sempre exatamente aqui, essencialmente não há necessidade de shikantaza, prática de koans, ou de acompanhar a respiração. Resumindo uma vez mais, “exatamente aqui”, também pode ser expresso de outras maneiras, tais como “pacificamente habitando dentro da lei da causalidade”. De outro modo não há caminho para a prática. Se vocês podem viver desta forma, então não há necessidade de dar nem mesmo um passo na direção da prática.

Esta passagem é sobre a condição exatamente agora e a condição da prática. Essas palavras foram escritas a partir da perspectiva de alguém que alcançou o Dharma. Do ponto de vista do Dharma, não há dúvida de que é este caminho. Mas não é assim para as pessoas. A despeito do quanto saibam, as paixões ilusórias (cobiça, raiva e ignorância) ou a iluminação sempre lhes acompanham. Consequentemente, o estado real da suas vidas será de sofrimento.

Os seres humanos experimentam uma ampla gama de estados emocionais e racionais, incluindo alegria, raiva, tristeza, compreensão e não compreensão. Todos são parte do Dharma ou Caminho. Nós podemos livremente sentir essas coisas, livremente pensar essas coisas. Que outra liberdade além desta estariam procurando? Eu realmente gostaria que vocês acreditassem que, nas nossas condições atuais, nós estamos dotados do Dharma, neste caminho.

Durante os quarenta e nove anos que o Buda Xaquiamuni expôs o Dharma, ele nunca disse, “Acreditem em mim”. Diferentemente, ele sempre disse, “Acreditem no Dharma. Acreditem em vocês mesmos”. Isto é algo em que vocês devem acreditar resolutamente. Se não o fizerem, sua prática não será clara. Porque vocês não podem acreditar completamente que a prática do Zen é o estudo de si mesmo, é que vocês começam a procurar o Dharma no raciocínio ou nos ensinamentos de Budismo. Ou procurar em outro lugar e sair correndo para a direção oposta. Esta parece ser a sua condição atual.

A prática do Amida Butsu, ou Amithaba, é disseminada no Japão. Eu acho que muitos de vocês sabem que ela envolve a recitação de “Namu Amida Butsu” enquanto se faz uma prostração. No Zen Budismo, uma pessoa que recita “Namu Amida Butsu” já é Amida Butsu. O objeto em direção ao qual as pessoas se prostram, principalmente Amida Butsu, e a pessoa que está fazendo a prostração são uma coisa só.

Esta parte agora é muito importante. Quando você resolveu acreditar, não é bom que a crença permaneça. Acreditar quer dizer que há alguém (“você”) que está acreditando. Em outras palavras, quando se acredita em algo verdadeiramente, a crença deve desaparecer. Eu gostaria que vocês compreendessem claramente que devem abandonar aquilo em que estão acreditando. A condição da crença pura é absoluta. É uma condição onde dúvidas e crença, num sentido dualístico, desapareceram. Crença e dúvida, crença e descrença são, ao fim, as ideias de pessoas. A condição onde crença e dúvida desapareceram é o que chamamos de “Dharma” ou “Caminho” ou “agora”.

Há uma metáfora que ilustra o quão isto é difícil. É comparável à imensa improbabilidade de, tendo uma agulha caído no fundo do mar, um fio de seda que caia do céu passe pelo buraco daquela agulha.
(6ª e última parte do 1º Comentário de Harada sobre o Fukanzazengi)