29 janeiro 2011

Fukanzazengi - 22º comentário de Coupey

...não pensemos nem no bem, nem no mal, nem no certo, nem no errado.

Os oito caminhos (ou Nobre Caminho Óctuplo) sobre os quais Buda falou pouco depois de seu despertar, nos ensinam que devemos ter a compreensão correta, o pensamento correto, a visão correta. O que isso significa? É , por exemplo, observar sem pensar em qualquer coisa ou em qualquer pessoa. Mas quando observamos qualquer coisa ou qualquer pessoa com a ideia de "isso é bom" ou "isso é mau", assumimos um ponto de vista moralista que bloqueia toda a fluidez da mente: não é mais a condição normal, a compreensão e o pensamento corretos, mas apenas o pensamento subjetivo. Ser capaz de fazer a distinção imediata entre o que é bom e o que é mau é fundamental. É a mente de buda.

Então observem apenas uma vez, não duas. E, evidentemente sem julgamento, sem ideia pessoal, sem análise. Está aí o funcionamento da mente do homem desperto, pois, para ele o momento presente é totalmente completo. Observem uma vez, e o instante pode tornar-se eternidade. Isto é muito diferente da ótica moralista. Mestre Deshimaru disse um dia a  alguém, " Não sente num zafu moralista". Apesar disso, um de seus discípulos disse um dia a algumas pessoas que ele era um mestre moralista, que seu ensinamento era moralista. Quando lhe contaram essa história, ele ficou com uma raiva louca, ou pelo menos pareceu ficar, lembro-me bem, foi no refeitório de Pertigny. Ele gritou, "Eu não sou moralista!" e, em seguida, pegou um kyosaku para bater no discípulo. No fim, todos ficaram contentes... Ríamos à socapa, entusiasmados porque nosso mestre não era moralista...

Apesar disso, não ser moralista não quer dizer evidentemente que é preciso ir contra a moral. Um homem sábio, o que quer que deseje, permanece sempre, automatica e inconscientemente, no domínio da moralidade. Mas se vocês tentarem seguir a moralidade dos outros, isto é, viverem atrás de um modelo, não serão livres e nada farão senão se enganarem. Assim é que o homem comum, que frequentemente proclama alto e bem forte a moralidade, comete muitos erros nesse campo.
No tempo de Confúcio, vivia escondido nas montanhas um ladrão muito conhecido chamado Toseki. Ele roubava não importava o que nem de quem, roubava os ricos e os bons cidadãos. Confúcio verdeiramente desejava encontrar aquele ladrão, que pensava poderia converter à "boa moral". Um dia, o ladrão, por intermédio de um de seus homens, fez saber a Confúcio que ele poderia vir vê-lo na montanha e que alguém o conduziria até ele. Depois de um longo périplo, pois era preciso se assegurar que as autoridades não seguiam Confúcio e seu guia, chegaram onde se achava o ladrão. Mas muito rapidamente Toseki disse a Confúcio, "Pare, pare! Você é um homem pueril, infantil. Você está preso à moral, você vê apenas um lado. Você está um pouco confuso, Confúcio! Exponha seu pensamento a quem quer escutá-lo, mas não a mim, não aqui. Adeus, não volte mais!" E Confúcio foi despachado. Sem dúvida, ele ficou marcado pelo resto da sua vida com essa experiência, foi um grande choque e um grande desafio para ele. Mas não para a verdade.
Um dia, fui cercado de gente que queria roubar minha mobilete. Era uma Solex velha que quase não andava...  Eram duas pessoas. Eles chegaram numa mobilete muito bonita, mas mesmo assim queriam roubar a minha... Ao fim eu os apanhei e isso acabou mal para eles... E eu me vi com duas mobiletes! Na manhã seguinte, no genmai, eu contei essa história ao Mestre Deshimaru. Ele gostou muito e me fez repeti-la pelo menos dez vezes...

Ao fim, eu disse:
- Sim, mas Sensei, eu roubei, mesmo assim...
Ele respondeu:
- É o que, roubar?
- Não sei, é o que...?
- Está correto o objeto que troca de lugar.

Então, se Mestre Deshimaru fosse visitar esse ladrão, ele teria, talvez, podido mudar profundamente sua mente, o que Confúcio, através da moral, absolutamente não conseguiria fazer. E nunca teria podido dizer a Toseki, roubar, é apenas um objeto que troca de lugar...

23 janeiro 2011

Fukanzazengi - 21º Comentário de Coupey

Deixando tudo de lado, não pensemos nem no bem, nem no mal, nem no certo, nem no errado.

Durante o zazen, não pensem "isto é certo, aquilo é errado". Não tomem nenhuma posição. Observem apenas seus pensamentos. Concentrem-se em sua postura, na sua expiração. A maior parte das pessoas, hoje em dia, utiliza apenas o cérebro frontal e esquece completamente seu cérebro instintivo, primitivo. Assim, um dos maiores problemas de nossa civilização moderna é que todos tornam-se doentes da cabeça, sofrimento não tanto físico, como mental. Não falo apenas das pessoas que estão internadas em hospitais psiquiátricos, mas de todo o mundo. O que me leva a pensar na quinta estrofe do Shinjinmei:



"Na nossa consciência, a luta entre o verdadeiro e o falso
Desemboca na doença da mente".

Quando vocês praticam o zazen, vocês aprendem, através da postura e da respiração abdominal, a colocar o cérebro frontal em repouso e a pensar com o hipotálamo, com o corpo, com o hara. E, assim, vocês retornam ao que o Mestre Deshimaru chamava de condição normal. Cada um possui seu próprio ritmo e para alguns isso pode levar muito tempo. Outros, ao contrário, aí chegam rapidamente. Isso não quer dizer que aprofundarão sua prática verdadeiramente. A maior parte das pessoas pratica durante anos, compreende os ensinamentos, tem um pequeno satori... e aí permanece. Mas quando paramos, começamos a recuar. Diz-se que aquele que, depois de se ter engajado no Caminho, interrompe a prática, não mais reencontrará o Caminho nesta vida.

É a partir da condição normal que se começa a praticar verdadeiramente o zazen. Mestre Deshimaru falava disso com frequência. "O desabrochar do ser humano, dizia, está na diminuição, na liquidação do subconsciente", ou se preferirem, da pessoa superficial. É preciso que o subconsciente se eleve e saia. Assim, torna-se claro, simples, e o karma se dissolve. Reencontrando através da condição normal  nossa natureza original, descobrimos nossa natureza original, que não deve ser confundida com um grande ego. Muitas pessoas, frequentemente fora dessa prática, creem que praticando o zazen perdem sua individualidade. Mas não é o caso. Ao contrário, nós a encontramos, nós a desenvolvemos e, assim, desabrochamos.

O que é a condição normal? Podemos defini-la como ku soku ze shiki, shiki soku ze ku: o vazio é a forma e a forma é o vazio. "Vazio" não é uma boa palavra, pois não há nada a "encher". Não permaneçam no ku, não permaneçam no shiki. Eis a condição normal, a mais elevada verdade. Se vocês fizerem isso, estarão completamente na realidade do momento presente. Isto pode ser mais verdadeiro? É preciso sempre fluir, como o rio. A sabedoria não pode funcionar senão nesse movimento.

Quando na vida não temos nenhum desejo, vivemos como os devas, temos tudo. Nesses momentos, não é difícil de praticar "ku é shiki" e "shiki é ku". Mas quando estamos em dificuldades, porque nossa mente fica doente por conta das dificuldades que aí encontra, é muito mais difícil de estar na condição normal e praticar ku soku ze shoki, shiki soku ze ku... Por isso é importante praticar o zazen quando se está mal. É uma grande ocasião de observarmos nossos bonno e a maneira que interpretamos e recebemos as coisas que nos fazem mal à cabeça, de nos observarmos objetivamente e compreendermo-nos a nós mesmos e também aos outros. Não é preciso fugir das dificuldades, mas, ao contrário, nos servirmos de cada coisa como um meio para praticar o Caminho e nos liberarmos profunda e verdadeiramente. Por isso que o Mestre Unmon dizia, "Cada dia é um bom dia".

Um monge (uma monja) não é infeliz, pelo menos essa é minha experiência. Tenho e tive em minha vida sérias dificuldades e, como com todo o mundo, acontece de eu sofrer. Mas esse sofrimento, hoje em dia, não mais me faz infeliz. Ao contrário, ele me interessa, ele me oferece uma ocasião e um instrumento, um meio de observar o que se passa. Agora, quando as coisas vão mal, eu quase posso dizer que esfrego as mãos, e não é masoquismo! Quando as coisas vão bem, ao contrário, eu presto bastante atenção... Mas quando vão mal faço logo o melhor de mim para não mostrar, mas depois isso me intriga verdadeiramente e me incita a observar a mim mesmo, como se eu fosse lançado contra o zafu... Antes de conhecer essa prática, os sofrimentos que experimentava eram abafados, mas duravam anos às vezes. Hoje em dia, eu constato que embora a dor seja particularmente viva, através dessa prática ela passa mais rápido. Então eu prefiro "passar por maus momentos" e  deles me desembaraçar rapidamente. E, particularmente, seu eu puder fazê-lo com zazen.



16 janeiro 2011

Fukanzazengi - 19º e 20º comentários de Coupey



Devemos ser moderados no comer e beber,...

Todos podem compreender esta frase. Quando forem fazer zazen vocês devem beber ou comer apenas dois terços do que habitualmente. Quando fazemos sesshin, compreendemos isso muito rapidamente: quando comemos muito rapidamente nos doem as articulações e ficamos com sono o tempo todo. Todos sabemos, mas não colocamos em prática necessariamente...

Em quase todos os dojos americanos e japoneses pratica-se oryoki, o uso ceimonial da tigela durante a refeição. Nós não fazemos isso, comemos à europeia. Mas se o Mestre Deshimaru estivesse vivo hoje em dia, nós estaríamos certamente praticando oryoki durante as refeições. De um certo modo, poderíamos dizer que ele morreu em boa hora, pois isto permite que nossa prática continue europeia... Oryoki quer dizer literalmente, "o que contém exatamente o bastante", tratando-se eveidentemente da tigela. Não é preciso encher a tigela até a borda, nem de guardar comida de reserva. É a mesma coisa com o zazen: não guardem zazen, ou sua energia de zazen, de reserva. Dêem tudo aqui e agora.

...deixando de lado todo relacionamento delusivo.

Seguramente não se trata de "deixar tudo de lado" no momento eme que se faz alguma coisa, mas durante o tempo do zazen. Quando vocês entrarem num dojo, devem abandonar todos os negócios da vida quotidiana, todas obrigações e, tanto quanto possível, todas as relações. Vocês devem deixar atrás de si tudo que os prende à vida quotidiana, não apenas durante um único zazen, mas durante todo o dia de zazen ou durante um sesshin. Por isso é que num dojo , recomendamos que se vista um quimono preto e abandonar toda maquiagem, jóias, sapatos, relógio etc.

Isso me faz lembrar um texto do mestre Fuyo Dokai onde se encontra esta frase muito forte: "Os monges devem odiar o trabalho sujo da mente, devem estar além da vida e da morte, interromper as atividades da mente e rejeitar todas as relações complicadas". Durante muito tempo eu não compreendia muito bem essa maneira de ver. Pensava que quando Fuyo Dokai falava de "rejeitar as relações complicadas", subentendia que era preciso também rejeitar as pessoas que a a gente conhecia, as pessoas complicadas, perdidas, as pessoas confusas... Compreendi, em seguida, que ele queria dizer sobretudo: eu mesmo, eu devo rejeitar minha própria atividade consciente.

10 janeiro 2011

O Dharma se espalha da superfície para o centro

Eis aqui uma história. O primeiro ancestral [Bodhidharma] pediu a seus discípulos, "Meu tempo está finalmente chegando, porque cada um de vocês não falam sobre o que atingiram?"

Então seu discípulo Daofu respondeu, "Meu entendimento é realizar a função do caminho sem apego às palavras e sem separação das palavras".

O patriarca disse, "Você tem minha pele".

A monja Zongchi disse, "Minha compreensão atual é como a de Ananda vendo a terra do Aksobhya Buda uma vez e nunca mais a vendo".

O patriarca disse, "Você tem minha carne".

Dayu disse, "Os quatro grandes elementos são fundamentalmente vazios. Os cinco skandas não existem e, a meu ver, não há sequer um Dharma a ser alcançado."

O patriarca disse, "Você tem os meus ossos".

Finalmente, [Dazu] Huike fez uma prostração e ficou de pé na sua posição.

O patriarca disse, "Você tem minha medula."

O professor Dogen então disse: Ultimamente as pessoas acreditam que isso são níveis rasos ou profundos, mas isto não é o que o patriarca quis dizer. "Você tem a minha pele" é como falar das lanternas e dos postes que as sustentam. "Você tem minha carne" é como se dissesse "Esta mente mesmo é Buda". "Você tem meus ossos" é como falar das montanhas, dos rios e da grande Terra. "Você tem minha medula" é como girar uma flor e piscar os olhos. Não há raso ou profundo, superior ou inferior. Se vocês podem ver isto, então vocês vêem o professor ancestral [Bodhidharma] e vocês podem receber a transmissão do manto e da tigela.

Isso é uma assertiva. Além disso eis um verso que diz:

O poder da roda do Dharma
dos budas ancestrais é grande,
girando o inteiro universo e
girando cada átomo.
Ainda que o manto e a tigela
tenham sido transmitidos
para as mãos de Huike, o Dharma é
ouvido por todos e universalmente
penetra todos os homens e mulheres.
Mestre Dogen -  Eihei Koroku - 46

09 janeiro 2011

Recitar sutras, sentar em zazen


Quando ele recitava os sutras,
rebanhos de carneiros vinham ajoelhar-se e ouvi-lo.
Quando praticava o samadhi,
pássaros aninhavam-se em seu manto.


Fukanzazengi - 18º comentário de Coupey

Ao fazermos zazen, é desejável que tenhamos um quarto calmo.

Com efeito, um ambiente tranquilo é desejável. Mestre Deshimaru falava frequentemente do dojo de Pernety, dizendo que aquele dojo era muito calmo: "Para Paris, este dojo de Pernety é verdadeiramente tranquilo. Avallon também é muito calmo". Nada mudou. Pode-se dizer até que o dojo de Tolbiac é mais adequado do que o de Pernety. É maior e mais silencioso. Embora localizado em um bairro muito frequentado, está protegido dos ruidos da cidade.

Certamente, com o hábito do zazen, podemos praticar por toda a parte, não importa onde nem quando. Não temos nem mesmo a necessidade de ter um dojo. Nem temos mesmo a necessidade de uma estátua de Buda. Nem temos mesmo a necessidade de um zafu (várias vezes pratiquei sobre meus calçados...). Para um velho praticante, é evidente que mesmo em pleno cruzamento de uma cidade movimentada pode-se estar só, como na montanha. Mushin, não-mente: eis a verdadeira montanha. É o que Mestre Dogen diz no primeiro parágrafo do Fukanzazengi: o Caminho é onde aqui onde estamos. Porque ir a algures? O verdadeiro dojo se encontra sob o céu. Prestem apenas atenção onde vocês colocam os seus pés. Seja num dojo, num templo, num quarto, numa gruta como aquela de Bodhidharma.