22 julho 2007

Sandokai - 18º Comentário de Suzuki

A luz e a escuridão são um par,
Como um pé na frente e um pé atrás ao andar.


Continuamos falando sobre a realidade do ponto de vista da independência. Dependência e independência são, na realidade, dois lados de uma moeda.

As pessoas podem dizer que os japoneses são muito duros. Mas este é apenas um lado da personalidade japonesa. O outro lado é a suavidade. Em função de sua tradição budista, eles foram treinados dessa maneira por um longo período. O povo japonês é muito gentil.

Temos uma canção infantil que descreve um herói chamado Momotaro, o Menino Pêssego. Havia um velho casal que vivia próximo à beira de um rio. Um dia a velha mulher apanhou um pêssego da correnteza e trouxe-o para casa. Do pêssego saiu Momotaro. As crianças japonesas cantam uma canção sobre ele: “Ele era muito forte, mas muito bom e gentil”. Ele é a personalidade japonesa ideal. Como você o chama? Deve existir uma expressão para isto.

- Herói folclórico?

Sim, herói folclórico. Sem uma mente suave você não pode ser realmente forte. Se Momotaro não tivesse este lado de sua personalidade, se não fosse simpático, não poderia ser realmente forte. Uma pessoa que é forte apenas para si própria não é tão forte, mas uma pessoa forte que é muito bondosa apoiará as pessoas e pode ser realmente um herói folclórico. Quando temos tanto um lado suave quanto um lado forte, podemos ser fortes de um modo real.

Pode ser mais fácil lutar e ganhar do que agüentar sem chorar quando você é derrotado. Você deveria ser capaz de permitir que seu inimigo o derrote, ok? Isto é muito difícil. Mas, a menos que você suporte a amargura da derrota, você não poderá ser realmente forte. A prontidão para a derrota pode ser um sinal de força. Dizemos, “O salgueiro não pode ser quebrado pela neve”. O peso da neve pode partir os galhos de uma árvore forte. Mas com o salgueiro, embora a neve possa vergar ou torcer os galhos, mesmo uma neve tão pesada como a que tivemos ano passado não pode quebrá-los. O bambu também verga facilmente. Parece fraco, mas nenhuma neve pode parti-lo.

“Como um pé na frente e um pé atrás ao andar”. Escuridão e claridade – absoluto e relativo – constituem um par de opostos, como os pés da frente e de trás quando caminhamos. Esta é uma boa maneira de explicar a unicidade, ou a função real de um par de opostos. Expressa como aplicamos pares de opostos, como ilusão e iluminação, realidade e idéia, bom e mau, fraco e forte, na nossa prática diária. As pessoas que se sentem fortes podem achar difícil ser fracos. Pessoas que se sentem fracas podem nunca tentar ser fortes. Isto é bastante comum. Mas às vezes devemos ser fortes, às vezes, fracos. Se você permanece sempre fraco ou se você quer ser sempre forte, você não pode ser forte no sentido verdadeiro.

Quando você aprende algo, você deve ser capaz de ensinar às pessoas. Você deve dedicar o mesmo esforço para ensinar como para aprender. E, quando você quiser ensinar, deve ser humilde o bastante para aprender algo. Então você pode ensinar. Se você tentar ensinar apenas porque sabe alguma coisa, você não pode ensinar nada. Quando você estiver pronto para ser ensinado por alguém, então, se necessário, você pode ensinar as pessoas no verdadeiro sentido da palavra. Deste modo, aprender é ensinar e ensinar é aprender. Se você achar que é sempre um aluno, você não pode aprender nada. A razão para você aprender algo consiste em ensinar aos outros depois o que você aprendeu.

Não existe nenhum padrão moral padrão. Você descobre seu código moral quando você tenta ensinar os outros. Antes que o Japão perdesse a guerra e se rendesse incondicionalmente, o povo japonês pensava que dispunha de um ensinamento moral que era absolutamente correto. Eles acreditavam que não cometeriam nenhum erro se observassem estritamente aquele código. Mas aquele código, infelizmente, havia sido estabelecido no início da era Meiji (1868-1912). Depois de perder a guerra, perderam confiança na sua moralidade e não sabiam que tipo de moral deveriam observar. Não sabiam o que fazer. Mas, na realidade, não deveria ser tão difícil cada um encontrar seu código moral. Eu dizia às pessoas naquela época, “Vocês têm filhos. Vocês devem criá-los. Vocês naturalmente saberão o código moral para vocês mesmos”. Quando você pensa que o código moral é apenas para você mesmo, este é um entendimento unilateral. Um código moral é, sobretudo, ajudar os outros. O código moral que você descobre quando você quer ajudar e ser bondoso para os outros será igualmente bom para você.

Costuma-se dizer, “Ir para o leste cem milhas é ir para o oeste cem milhas”. Quando a lua está alta no céu, a lua estará funda na água. Mas habitualmente as pessoas observarão a lua acima da água e não verão a lua na água. Que a lua está funda, quer dizer que a lua está alta. A lua na água é independente e a lua acima da água é independente. Mas a lua acima da água é também a lua na água. Devemos compreender isto. Você deve ser forte quando você está forte. Você deve ser muito firme. Mas esta firmeza vem de sua bondade gentil. Quando você é bondoso, você deve simplesmente ser bondoso. Mas isto não quer dizer que você não seja forte.

As mulheres podem não ser tão fortes fisicamente quanto os homens. É em função disto que elas frequentemente são mais fortes que os homens. Na realidade, não sabemos quem é mais forte. Nossa força é absolutamente igual à de qualquer um quando temos nossa própria natureza completamente independente. Quando você fica comparando quem é mais forte, você ou eu, você não possui uma força real. Quando você é completamente independente, alguém com sua própria natureza, você é um poder absoluto em uma situação relativa. Quando diferentes tipos de pessoas competem entre si, não são tão fortes. Quando cada um torna-se completamente ele mesmo, passa a possuir poder absoluto. Compreende este ponto?

Deste modo, luz e escuridão, embora constituam um par de opostos, são iguais, como quando um pé num passo está à frente e o outro atrás. Quando você caminha, o passo adiante imediatamente se torna o passo atrás. O passo com seu pé direito é o seu passo a frente ou seu passo atrás? Qual é? Qual é claridade e qual é escuridão? É difícil dizer.

Quando você está caminhando, não há pé à frente e pé atrás. Se você parar de andar e pensar sobre o assunto, às vezes o pé direito pode estar adiante e o pé esquerdo, atrás. Mas quando você estiver caminhando, quando você estiver realmente praticando o caminho, não há luz nem escuridão, nenhum pé adiante ou pé atrás. Quando eu digo que você deve simplesmente sentar em zazen sem pensar, você pode imaginar que você não deveria ter nenhum pensamento. Você será aprisionado pela idéia de que o pé direito está à frente e o pé esquerdo está atrás. Então você não poderá mais andar. Você não faz nenhuma idéia de pé direito ou pé esquerdo quando você está realmente andando. Mas se você estiver auto-consciente de pé esquerdo ou pé direito, você não poderá andar ou correr.

Como disse, antes que você mastigue sua comida, há arroz, picles e sopa. Depois que você mastigou sua comida, não há mais arroz, picles, sopa. Depois que você misturar a comida na sua boca, ela será digerida na sua barriga e servirá à sua finalidade. Mesmo assim, devemos servir uma coisa depois da outra e a sobremesa virá no fim. Há uma ordem. Mas mesmo que exista uma ordem, você deve mastigar sua comida e misturá-la, ou a comida não atenderá sua finalidade. É preciso pensar sobre ela, ter uma receita, mas é também preciso mastigar e misturar tudo. Esta é uma boa interpretação da realidade e uma boa ilustração de como praticamos nosso caminho e o tipo de atividade que acontece nas nossas vidas quotidianas. A interpretação de Sekito da realidade, à luz da independência, está completa.

08 julho 2007

Sandokai - 16º Comentário de Deshimaru (cont.)

Um filho costumava acompanhar seu pai à pesca. Um dia, quando os dois estavam pescando, um peixe grande fisgou o anzol. Arrastado pela força que o peixe imprimia sobre o caniço de bambu, o pai caiu no mar. O filho pensou, “O que devo fazer? – devo ajudar meu pai... Ele certamente me diria que devo pescar até a minha morte e continuar seu karma...” Rápido, ele escondeu-se com o barco. Entrou num convento de eremitas escondido na montanha e virou monge. Mais tarde, tornado um grande Mestre, viu, uma noite, seu pai perto dele e lhe falando ao ouvido. “No momento exato que você não me retirou da água, meu karma mudou. Agora estou no paraíso e faço sampai para você”.

Observando apenas um lado, não podemos compreender, mas se considerarmos essa história à luz da fonte do espírito, ela torna-se exemplar.

No Japão antigo, alguns grandes monges faziam os transportes de dinheiro do templo de Eihei-ji. Um ladrão se pôs a segui-los, na esperança de apropriar de um grande butim. Uma noite, enquanto o tesoureiro dormia, ele entrou com passos de gato no quarto onde se encontravam o monge e o dinheiro. Abriu muito suavemente a porta e deu uma espiada no quarto antes de entrar. Ninguém. A claridade da lua inundava o quarto. Solitário, no centro da peça, um ramo de pinheiro. O ladrão, espantado, se disse, “Porque este quarto está vazio? O monge não saiu. Deveria estar aí. Eu o vi entrar no exato momento”. Recomeçou várias vezes suas artimanhas, mas, no quarto vazio, a lua iluminava sempre o ramo de pinheiro. Não ousava entrar. Decidiu-se finalmente e nada encontrou, dinheiro nenhum, apenas o ramo de pinheiro. Pensou que aquele monge possuísse um poder mágico que lhe permitia transformar-se em ramo de pinheiro, e que este poder era muito mais importante que o dinheiro porque lhe permitiria escapar da polícia. “Tenho que aprender este poder”. E, manhã alta, voltou ao quarto. Ali encontrou o monge. O ramo havia desaparecido. À sua pergunta “Onde você estava na noite passada?”, o monge respondeu, “Mas eu estava aqui! Fazia zazen, e não possuo nenhum poder mágico!” O ladrão lhe perguntou se podia lhe mostrar como fazer zazen e o monge lhe ensinou a postura.

Não devemos sofrer a influência das ações dos outros. É de nós mesmos que devemos extrair a essência.

“Saibamos apenas que quando escutamos um Mestre do Zen, não é preciso, ao escutá-lo, aduzir suas instruções às nossas concepções pessoais. Aquele que assim fizer não poderá apreender as instruções do Mestre. Quando consultamos um Mestre para nos informar sobre a lei, ele nos faz purificar o corpo e o espírito, acalmar a vista e o ouvido. Nada a fazer a não ser escutar as instruções do Mestre, sem aí misturar qualquer pensamento. O corpo e o espírito devem ser um e o mesmo que aquele do Mestre, como a água que vertemos de um vaso a outro. Apenas aquele que se tornar assim, poderá recolher o ensinamento do Mestre” (Dogen, Gakudo jin shu). Apenas tal discípulo será admitido no shiho.

O sutra do nirvana fala de um certo rei que só dizia sempre uma só palavra a seu aio: “Sandabbah” ou Arê em japonês: “Isto!”. Sandabbah para o sal, para as frutas, para a água, para selar o cavalo. Durante sua refeição o rei ordenava: “Sandabbah!” e o aio lhe trazia o sal. Sandabbah! O aio lhe apresentava as frutas. Sandabbah! Água fresca era vertida em seu copo. Sandabbah! E seu puro sangue era selado. A linguagem do rei e os tos de seu aio se encaixavam sempre perfeitamente. Sandabbah! Se o aio trouxesse o cavalo à mesa, grande erro! Ele compreendia por intuição. A educação Zen é a mesma coisa. O ponto final, shiho, significa a unidade do sangue do discípulo e do Mestre. Apenas o silêncio e, neste instante, tudo pode se transmitir.

02 julho 2007

Sandokai - 16º Comentário de Deshimaru

O absoluto funciona junto com o relativo,
Como duas flechas se encontrando no meio do ar.
Recebendo estas palavras, deveis
Compreender a grande realidade.
Não julgueis por quaisquer padrões.


É preciso tocar diretamente o espírito do Buda. Como tocá-lo? Nele entrando, diretamente! Pelo zazen! Buda fazia zazen sob a árvore Bo. Ele se despertou. Satori. Ele transmitiu a Mahakashyapa a essência e o método desse satori.

E, em seguida, esta transmissão foi efetuada de Mestre a discípulo praticando o zazen. Um discípulo que faz zazen tem em si a capacidade e a possibilidade do despertar.

Ao ler um sutra é preciso compreender seu sentido, não depender das palavras. I shin den shin!

Também é uma transmissão secreta do espírito do Mestre ao do discípulo: “a transmissão secreta do Zen”.

Apenas entre duas pessoas: o Mestre e o discípulo. Nenhuma outra pessoa pode intervir. Segredo absoluto, direto, inexplicável pelas palavras e pela linguagem. Transmissão simbolizada, confirmada pelo kesa, pela tigela ou por um certificado.

Um discípulo não poderá mudar esse segredo segundo suas próprias idéias. Ele deverá, à sua vez, retransmiti-lo à geração seguinte. Como a chama de um archote que passa de mão em mão. Tal é a essência do Buda que foi transmitida até mim. Esses versos são os versos maiores do Sandokai. Pode-se dizer que eles aí introduzem a conclusão.

Duas flechas se encontrando em pleno ar, uma metáfora chinesa. É a história de Kisho e Hiei, à qual também faz referência o Hokyo Zanmai. As pontas das flechas se encontram. A caixa e sua tampa se ajustam perfeitamente.

Prática e princípio se ajustam da mesma forma. Substância e ação, escuridão e luz, fonte e afluentes, unidade e diferenças, ku e shiki se encontram, coincidem e se penetram mutuamente. A caixa, a tampa, as duas são necessárias.

A utilidade e posição de cada termo são diferentes. Mas quando os dois se ajustam perfeitamente, o equilíbrio se realiza. Entre homem e mulher, por exemplo. O sexo do homem e o da mulher são opostos. Um penetra, o outro recebe. Mas para realizar sua utilidade, eles devem se encaixar, coincidir perfeitamente. E, por este ato, a utilidade do ser humano se realiza. É a unidade, não apenas um lado nem o outro, mas os dois em um. Do mesmo modo, além do pensamento e do não pensamento, Hishiryo.

Não devemos apegar-nos à superfície das palavras, mas compreender a fonte, o sentido profundo, a grande realidade.

Um Mestre Zen, encolerizado com seu discípulo, diz-lhe: “Deves sair! Não! Não pela porta! Não! Não pela janela!” Por onde? É um koan! Outro exemplo:

Mestre Obaku tornou-se célebre e sua velha mãe cega desejava encontrá-lo. Obaku viajava a maior parte do tempo. A mãe esperava seu filho perto de um barco, prestando alguns serviços às pessoas que por lá passavam, e emitindo os bilhetes do barco. Também fazia massagens nas pessoas cujos pés e tornozelos estavam doloridos. Esperava, assim, reencontrar seu filho um dia. Os pés de Obaku tinham cicatrizes características. Obaku chegou à margem do rio. A mãe, por intuição, agarrou o pé de seu filho e o reconheceu. “Diz-me o teu nome, penso que sou sua mãe... Tu és Mestre Obaku...” Ele passou sem responder, mas um passante advertiu a mãe de que aquele homem era mesmo o Mestre Obaku. Ela correu até ele, tentando alcançá-lo antes que o barco partisse. Mas o barco já havia começado sua travessia e mãe caiu na água ao tentar juntar-se a seu filho. Então Obaku disse, “A família que criou um filho que se tornou um verdadeiro monge, renascerá no céu”. A maioria das pessoas achava que Obaku não era um homem normal, mas um ser um pouco louco. Obaku, entretanto, tinha visto sua mãe subir ao céu naquele exato instante. A atitude de Obaku parece estranha, mas é preciso compreender a fonte de suas ações e de sua história. Ele ensinou como um grande mestre pode educar sua família no caminho da realização do satori. É o ponto escondido, obscuro... (continua).