28 dezembro 2011

Buraco negro


Abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri:
Antigamente eu era eterno.
Paulo Leminski (1944-1989)

Fukanzazengi - 49º comentário de Coupey

Tivestes a sorte única de tomar a forma humana, não percais vosso tempo. Trazei vossa contribuição à obra essencial do Caminho do Buda. Quem teria um vão prazer à chama jorrada do sílex?
É difícil nascer sob a forma  humana, mas cada um de nós mesmos nasceu humano. É difícil ouvir a verdade, mas nós a ouvimos. É difícil praticar o Caminho correto, mas no dojo nós o praticamos. Então todos os que praticamos o zazen (ou quase todos) sabemos agora como não perder nosso tempo, como não perder o momento presente. Entretanto, se temos a tendência de perder nosso tempo na vida quotidiana, não é muito difícil que continuemos a perdê-lo no dojo... Se passamos o tempo todo, por exemplo, a assistir partidas de futebol ou corridas de carros na televisão, a jogar cartas, ir sempre ao cinema, a discutir sempre, a tagarelar sobre não importa o que e não importa quando, como não fazer a mesma coisa no dojo? Como não chegar ali e estacionar nosso corpo, como estacionamos um automóvel no estacionamento, e sair para algum outro lugar tagarelando com nós mesmos ou ruidosamente?

No começo da prática, aprendemos rapidamente o que é o Caminho no dojo. Depois, natural e inconscientemente, chegamos ao Caminho fora do dojo. Mas, em seguida, se não prestarmos atenção, não conseguiremos trazê-lo de volta para o dojo, pois nos deixaremos ser pegos nas armadilhas por todos os fenômenos do mundo social. E, mesmo após vinte anos de prática, não sabemos mais o que fazemos e porque lá estamos. Então é preciso prestar atenção sempre, quer estejamos praticando há um mês, quer sejamos um monge de cem anos.
Um leigo queria obter uma caligrafia do célebre monge Ikkyu. Ele então escreveu em kanji: "Atenção!" O homem não ficou nada impressionado: "Isto não é muito profundo... Vc não teria uma outra coisa para escrever?" Ikkyu escreveu então: "Atenção. Atenção!" O homem nada compreendeu, ele queria qualquer coisa ainda melhor, certamente ele estava pronto para aplicar-lhe um golpe... Então Ikkyu escreveu: "Atenção. Atenção. Atenção!"
 "Atenção" em japonês é composto por dois kanji, um quer dizer presente, o outro, mente. Mente presente. É isto a urgência. É isto não perder seu tempo.

Não basta que venhamos simplesmente nos sentar em zazen. É preciso estar aqui e agora. É preciso que o momento presente esteja arrematado, completo. Como o ruído de um estalar de dedos. Tlec! O tempo torna-se eternidade, não nascido, não morrido. Isto é o satori, natural, automatica e inconscientemente.

"Não percais vosso tempo", é também: não pratiqueis um zazen confortável, não procureis apaziguar o que quer que seja, não procureis acalmar vossa mente, vossos problemas psicológicos. Os iniciantes não têm esse tipo de preocupação, mas em seguida nos metemos a buscar o conforto da postura e da prática. Procuramos uma espiritualidade confortável. Isso é uma perda total de tempo. Não é preciso parar. Quando paramos, eis que adormecemos... e acabamos por recuar, ainda que pratiquemos zazen todos os dias durante cem anos.

Um dia, um praticante veio me dizer que o zazen era bom para "apaziguar seu karma". Isto é falso. Para começar, zazen não é bom para nada. Pensar que o zazen pode servir para alguma coisa é um enorme absurdo e é não compreender nada do que fazemos. Além disso, zazen não apazigua absolutamente nada - além do mais não apaziguamos o karma, nós o cortamos (ainda mais, pois não é o zazen que o corta). Aquele que pratica não se encontra de maneira alguma apaziguado, ao contrário, ele se encontra assediado pela prática, pelo Caminho, mas comparece ao dojo. Colocamo-nos em questão, colocamos nossas ideias em questão, vemos que nossos pensamentos não são tão profundos, vemos nossas ilusões, nossos erros, mas não há apaziguamento. E mesmo assim, comparecemos ao dojo.

Todos, ou quase todos, nos mostramos preocupados como grilos, como cigarras. Tem uma iamgem retirada do Eiheikoroku que quer dizer: tagarelar, perder seu tempo, correndo atrás de dinheiro, do trabalho, por exemplo, choramingando porque não ganhamos tanto,  ou procurando constantemente distrações para passar o tempo, cinema, televisão, praia, palavras cruzadas, jogo, ping-pong, caça etc. É o pior das coisas para quem pratica, para quem carrega um kesa ou um rakusu. Se a maior parte dos homens e mulheres, durante toda a sua vida até o túmulo, passam seu tempo a se interessar de coisas fúteis, pior para eles, é assim... Mas para aquele que pratica o Caminho, que pediu e recebeu a ordenação, não há nada mais triste do que se aproximar do fim de sua sua vida sem haver podido esclarecer sua mente, limpá-la.

Está dito no Shukke Kudoku de Mestre Dogen que aqueles que vêm da região sul do monte Sumeru, isto é, nós, temos sorte por quatro razões:

1. Eles podem praticar o Caminho.
2. Eles podem ouvir o ensinamento de Buda.
3. Eles podem tornar-se monges, monjas.
4. Ele podem obter o satori.

Muitos não compreendem o sentido dessas palavras e pensam que devem praticar como loucos, por toda a parte e por todo o tempo - genmai no dojo, genmai com seus cônjuges em casa, nada de álcool, nada de sexo, nada de cigarros, nada de festas, mostrar cara feia... Mas não é nada disso. Não se trata de galopar sem relaxar atrás do que quer que seja como de uma cenoura.
 Um dos discípulos do samurai Miyamoto Musashi queria de todas as maneiras aprender a manejar a espada. Musashi lhe ensina durante três anos a cortar lenha. O discípulo furioso se põe um dia a reclamar. "De acordo, se você não quer mais cortar lenha, você pode agora caminhar pela borda do tatami. Ande, faça!" E, durante um ano, da manhã à tarde, aquele discipulo caminho pela borda do tatami. Sempre furioso, acaba por queixar com Musashi que lhe diz: "Venha ver, venha comigo". Musashi lhe conduz ao alto de uma falésia. Em cima do precipício um tronco de árvore está caído de mod a formar uma ponte entre as duas ,argens da falésia. O samurai diz a seu discípulo: Ande! Atravesse!" O discípulo tem medo. Um único pequeno erro e ele cairá no abismo. Mas eis que, nesse exato momento, um cego passa diante dele com um bastão e, batendo com sua bengala, atravessa o precipício caminhando sobre o tronco da árvore.

A prática não é a obtenção de qualquer coisa ou o fato de ir a qualquer parte. A prática é o momento presente. E é preciso saber dele nos servirmos. Não é apenas uma ideia, é o vivido.

O mestre pergunta ao discípulo:
"Então, de onde vens agora?
- Estava em Seto, responde o monge. [Seto era uma aldeia siituada muito longe].
- Certamente gastaste bastante as sandálias de palha..."
O monge permanece silencioso e o mestre constata que ele não compreende a prática. Diz-lhe, "Lamento essas sandálias. Elas foram usadas em vão".

21 dezembro 2011

Fukanzazengi - 48º Comentário de Coupey

Um só passo em falso e vos afastais do reto Caminho traçado à vossa frente.
"Um só passo em falso": ou é um passo em falso ou não é. Não há "quase". Um só passo em falso e não estaremos mais no momento presente. Um única gota de tinta num copo d'água escurece toda a água. Uma pequena noção de certo ou errado em nossa mente e a confusão está criada. Não há mais o reto Caminho traçado à nossa frente. Certo e errado estão muito próximos um do outro. E o inferno não está nem um pouco longe do paraíso. Como dizemos sempre, não é preciso escolher nem rejeitar. Rejeitar ou correr atrás é seguir os galhos. Não há necessidade de nos preocuparmos com os galhos. Devemos ir diretamente à raiz, devemos ir diretamente ao espírito do Caminho - qualquer outra coisa é secundária.

08 dezembro 2011

Flor do quiabo

Sol de meio dia —
Levemente inclinada
a flor de quiabo.
                                                 (Teruko Oda)

07 dezembro 2011

Fukanzazengi - 47º Comentário de Coupey


Não existe qualquer razão para deixarmos nosso assento de meditação e fazermos fúteis viagens a outros países para buscarmos isto.

Este trecho faz alusão à parábola do filho perdido descrita no Sutra do Lótus. Todo budista ou, ao menos, toda pessoa que se interessa pelo budismo, conhece essa história do filho que abandona seu lar, o palácio de seu pai, para tornar-se um vagabundo. Existem muitas maneiras de recontá-la. 
O filho de um rei se perde durante a guerra e se encontra no pais inimigo. Depois de um longo lapso de tempo, esse filho perdido, que se tornou mendigo, encontra-se, por acaso, em seu país natal, coisa que ele ignora. Um dia, o rei o vê, e crê reconhecê-lo como sendo o filho desaparecido. Mas quando dele se aproxima, o mendigo tem medo e foge. Numerosas buscas são realizadas para encontrar aquele filho. Finalmente, o pai se serve de todos os meios para seduzi-lo. Por exemplo, ele se fantasia de mendigo e, progressivamente, consegue dele se aproximar sem que ele o tema. O filho nunca sabe de nada. Depois o rei o leva a comer e, logo em seguida, o convida para um café, depois ao restaurante, depois ao hotel George V... e, finalmente, ao palácio. (A história no sutra mostra até como era preciso ir lentamente para não assustar o filho). E, quando este fica pronto, o pai lhe revela finalmente a verdade sobre a sua identidade. Então o filho se torna príncipe e, depois, rei.
No Sutra do Lótus, essa parábola se chama "A parábola do discernimento da fé". É a história  de um homem perdido na dúvida e que pensa que nada é bom a não ser mendigar. Ela nos fala da ilusão e ignorância nas quais estamos todos mergulhados, poderíamos dizer, desde nosso nascimento. Ela descreve o sofrimento da vida e da morte que carregamos durante toda nossa existência. É a história de nossos tormentos, nossos apégos, nossa recusa em levantar a cabeça e de olhar à nossa frente, de tomar nossas responsabilidades, assumi-las e não mais nos considerarmos como vítimas. Eis como o Mestre Deshimaru, mais ou menos, contava essa parábola: 

Emissários do rei dizem, um dia, ao filho perdido que se tornara mendigo:

"Você deve voltar para a casa de seu pai, você é filho de um homem rico". Mas o filho neles não crê. E eis que um dia, vem a mendigar no palácio de seu pai. Este, que o havia visto chegar, lhe oferece uma boa quantidade de comida. [Mestre Deshimaru não diz uma boa comida, mas uma boa quantidade...]. Na manhã seguinte, o mendigo retorna e lhe dão comida de novo. Ele compreende que ali encontrou uma boa casa... E, pouco a pouco, ele se encontra dentro da cozinha. Depois, ao fim de algum tempo, ele acha que poderia, talvez, tornar-se cozinheiro e, então, poderia comer à vontade e, quem sabe um dia, tornar-se intendente...

Então eis que aquele vagabundo vai lentamente subindo nas suas funções. No começo, ele toma gosto em comer os restos nos pratos do rei (seu pai!). Depois ele se diz, "Que sorte agora posso eu mesmo ir me servir na despensa qundo ninguém me observa!". E eis que um dia lhe dizem que não deve mais comer em pé mas que ele pode sentar-se numa sala confortável, e até mesmo ser tornar-se responsável...

A narração do Mestre Deshimaru é muito curta. Rapidamente ele chega ao final da história contando simplesmente que o filho acaba por acreditar no pai quando ele lhe diz, "Você é meu filho e eu vou lhe entregar esta rica casa". No começo, eu não gostava nada dessa história porque tinha a impressão que ela tratava de uma questão psicológica. Um homem perdido na vida, perdido na sua cabeça, que se considera inferior ao que é e que, finalmente, se dá conta de que é o filho do Buda. Eu não ficava nada impressionado. Mas agora que posso compreendê-la através das imagens do Mestre Deshimaru, eu me farto! E sua grande imaginação, como a sua própria compreensão, me fizeram me dar conta ainda mais profundamente de seu significado.

O Sutra do Lótus é um sutra mahayana e essa parábola do filho perdido descreve também o caminho que podemos tomar indo do budismo hinayana, Pequeno Veículo por si mesmo, ao budismo mahayana, Grande Veículo, por nada, mushotoku. Com efeito, a maior parte das pessoas praticam unicamente para elas mesmas. Na vida social é a mesma coisa: trabalha-se para seu ganho pessoal a vida inteira até a morte, e desde que se é pequeno. E um mendigo não é diferente. Igual para o filho de um rei, igual para um rei. Do mesmo modo, o hinaynista se desenvolve por si mesmo, passo a passo, se alimentando como faz o filho mendigo do homem rico. Além disso, está dito nesse sutra que "se entrares no caminho do Hinayana, avançarás passo a passo, durante 86.410 passos". Nessa velocidade, é difícil tornar-se um homem rico...

Assim, nessa parábola, vemos o filho mendigo se arrastar em diferentes lugares em busca de alimento. Recusando-se a ver que já possui o tesouro da casa do rei, a natureza de buda, ele lambe com felicidade as migalhas de seu pai, depois logo só pensa em tornar-se cozinheiro ou intendente, tudo isso seguramente para si mesmo. E é apenas ao final de uma grande viagem no tempo que ele vai finalmente reconhecer sua verdadeira riqueza, sua verdadeira natureza de filho de rei, não de um rei qualquer, mas do rei Buda Xáquiamuni, o rei que não trabalha para si próprio, mas para nada, isto é, para todo ser humano.

Eis, pois, as conclusões que podemos tirar dessa história. Para começar, não abandonemos o tesouro do verdadeiro pai. Depois, aqui e agora devemos nos tornar buda. Enfim, e simplesmente, não devemos patinar e arrastar-nos em lugares estúpidos. Como diz Dogen, "Para aqueles que ficam pastando mato à beira da estrada, é muito difícil de chegar ao verdadeiro Caminho".