13 junho 2010

Fukanzazengi - 3º Comentário de Coupey

Na verdade, o Grande Corpo está bem além da poeira do mundo. Quem poderia crer que exista um meio de limpá-lo?
Esta é uma boa pergunta. Estamos todos mergulhados nessa poeira... E esse texto, escrito nos anos 1200, permanece hoje deslumbrante pela sua verdade eterna.

Mestre Dogen faz aqui alusão direta à história bem conhecida dos dois discípulos do Mestre Konin, o quinto patriarca, Jinshu e Eno. Konin tinha dois tipos de discípulos: Jinshu, que comparava a prática budista – isto é, zazen, gyoji – ao ato de limpar um espelho; e Eno, que afirmava que, originalmente, não há impureza, portanto nenhuma necessidade de limpar o que quer que seja. Essas duas posições existiam bem antes de Eno (falecido em 713), e mesmo antes da chegada de Bodhidharma à China. Elas ainda existem hoje em dia, mas sob uma forma um pouco esclerosada. Hoje, todo mundo zomba da posição de Jinshu, a escola gradual, e se felicita por pertencer à escola de Eno, escola imediata ou instantânea. Nossa escola pertence à linha direta de Eno. Seguramente, nossa prática, nosso gyoji, é a imediata. Tudo se passa no momento presente, aqui e agora.

Mestre Konin pede a seus discípulos que escrevam um poema para demonstrar sua compreensão, sua sabedoria.

Jinshu escreve:

“O corpo é a árvore de Bodhi.
O coração-espírito como um espelho brilhante.
Sem cessar nós o limpamos e o enxugamos,
Para não deixar a poeira agarrar”.

E Eno – que tinha a posição mais fácil (pois ninguém esperava dele uma reviravolta!) – escreveu em resposta a Jinshu:

“Não há árvore de Bodhi,
Nem espelho brilhante.
Já que tudo ao fim é vazio,
Onde poderia a poeira pousar?”

O poema de Eno ilumina essa ideia de que verdade e ilusão não podem ser separadas, diferenciadas. É fundamental e absolutamente essencial disso nos darmos conta para compreender o ensinamento zen – pelo corpo, não pela cabeça.

A esse respeito, Yoka Dashi escreveu:

“Não procurar a verdade, não cortar as ilusões.
Pois compreendo claramente que os dois elementos são ku (sem forma)”

Aquele que separa, que faz uma distinção ente verdade e ilusão, nada mais faz senão expressar um ponto de vista do espírito humano, proveniente de seu cérebro frontal. Seguramente, cada um tem seu próprio ponto de vista. Mesmo o animal. Por exemplo, o homem concebe o dia como a coruja concebe a noite. Mas nada mais são do que dois pontos de vista, aquele de uma coruja, aquele de um homem. E aqui, no zen, nenhum ponto de vista nos interessa. Trata-se de ir além.

10 junho 2010

Uma pequena história contada por Coupey, ilustrativa de seu último comentário

Nos anos 700, na época quando os tibetanos ainda não haviam decidido que direção tomar, eles estudavam os ensinamentos contidos em um pequeno panfleto de Bodhidharma. Eles achavam aquele panfleto interessante, mas curioso. O mestre chinês que, naquela época, defendia aquele ensinamento, Ha-shang (ele tinha um dojo em Lhasa), falava sempre do despertar, do satori imediato, aqui e agora, exatamente o que ensinamos hoje em dia. Um dia, aquele ensinamento chegou aos ouvidos do rei. Ora, àquela época, no Tibete, existiam também outras práticas budistas como aquelas da escola indiana, diferentes do zen de Bodhidharma. O rei, desejando saber qual dos dois era o melhor ensinamento (chinês ou indiano), mandou vir um mestre budista indiano (chamado Kamalasila) a Lhasa, a capital. O ensinamento do mestre indiano era o ensinamento chamado gradual, baseado no estudo aprofundado dos sutras. O rei pediu que os dois mestres travassem um debate sobre o tema. O indiano falou longamente do despertar progressivo obtido pelo estudo e por uma prática baseada no estudo dos sutras. Depois que aquele mestre terminou sua exposição, o mestre chinês Ha-sang levantou-se. Fez gasshô para o rei e também para o mestre indiano. Depois se despiu sem dizer uma só palavra. Mas os tibetanos não estavam preparados para receber aquele ensinamento imediato... e o mestre chinês foi obrigado a deixar o Tibete. Então, desde aquele dia. O ensinamento no Tibete é gradual. O que significa o gesto de Ha-shang? Ha-shang retirando suas roupas é como Gutei levantando seu polegar ou Tanka queimando a estátua de Buda.

03 junho 2010

Fukanzazengi - 2º comentário de Coupey (2ª parte)

Entre todos os budas, nos três mundos (passado, presente e futuro), nenhum sabe que tem a natureza buda. Mas os gatos e as vacas sabem muito bem.

Não se trata de um koan, mas simplesmente de uma maneira metafórica de falar. Isso quer dizer que um buda (isto é, um homem desperto) não pensa se tem ou não a natureza de buda. Aquele que é desperto não pensa, “Eu, eu sou desperto, ele não é” – este é o pensamento do homem não desperto. “Mas os gatos e as vacas sabem muito bem”. Apenas os animais, apenas o espírito da ilusão, assim pensam.

A primeira vez em que me confrontei com essa maneira de ver, fiquei fortemente tocado. Pois isso queria dizer para mim que aqueles que praticam zazen não são melhores que os outros – “melhores” no sentido de que nós que praticamos obteríamos aquilo que os outros não podem obter... Algumas pessoas vão logo se dizer, “Mas, nesse caso, porque fazer zazen?” Um dia, durante um sesshin no Vale de Isère, Mestre Deshimaru havia dito algo semelhante. Um praticante se levantou em pleno meio do zazen e gritou, “Então, porque fazer zazen?! Para mim acabou, não sou idiota como vocês!” E partiu batendo a porta. Este é o espírito comum. Esse doutor pensava que era necessário, para praticar o Caminho, procurar ou criar qualquer coisa nova. Isso é falso. Tudo já está aí.

Esse é um ponto muito importante, mesmo no zen soto. Muitas escolas soto praticam o samadhi para alcançar o despertar, enquanto na nossa prática, ensina-se que o zazen e o satori são uma mesma coisa. É o zen imediato, o despertar imediato, sem graus, sem progressão, sem escalas, sem etapas, livre de todo entrave. O momento presente. A prática torna-se ela mesma realização, subitamente. Subitamente unidade. Assim, com as primeiras frases do Fukanzazengi, Mestre Dogen começa direto no cume da montanha. Não há progresso a fazer, ele nos diz. Não há montanhas a escalar, uma após a outra. Nada a subir. Mas isso não quer dizer que nada se passe: o espírito muda, é tudo.