25 agosto 2007

Sandokai - 19º Comentário de Suzuki (conclusão)

O Budismo não trata os seres humanos como se pertencessem a uma categoria especial. Colocar os seres humanos em uma categoria especial é ilusório e egoísta. No entanto, é normal para os seres humanos pensar dessa maneira, sem refletir para dentro, mas buscando alguma verdade fora de si mesmos. Quando você procura uma verdade fora, significa que seu pano de fundo não é grande o bastante. Você deve encontrar alguma confiança dentro de você mesmo.

O Sandokai diz aqui que todas as coisas têm sua própria virtude ou mérito. Como seres humanos, temos a nossa natureza própria. Apenas quando vivemos como seres humanos, que têm uma natureza humana auto-centrada, seguimos a verdade em seu sentido maior, porque estamos levando nossa natureza em conta. Assim devemos viver como seres humanos neste mundo. Não deveríamos tentar viver como gatos ou cães, que têm mais liberdade e são menos auto-centrados. Os seres humanos devem ser postos em uma jaula, uma grande jaula invisível como a religião ou moralidade. Os cães e gatos não dispõem de tal jaula especial. Não necessitam de qualquer ensinamento ou religião. Mas nós, seres humanos, precisamos de religião. Nós, humanos, devemos dizer, “desculpe”, mas cães e gatos não precisam. Desta forma, nós humanos, devemos seguir nosso caminho, e os cães e gatos devem seguir seus caminhos. É desta forma que a verdade se aplica a todas as coisas.

Se observarmos nosso caminho humano e os cães e gatos observarem seus caminhos animais, parecerá que os humanos e os animais têm naturezas diferentes. Mas embora suas naturezas sejam diferentes, seu pano de fundo é o mesmo. A aplicação da verdade deve ser diferente porque onde vivemos e o modo como vivemos são diferentes. É como o modo como empregamos a eletricidade. Às vezes a empregamos como uma luz e às vezes como um alto-falante. Os seres humanos têm sua natureza e os animais têm suas naturezas. Mas ainda que nossas maneiras de expressar nossas naturezas sejam diferentes, nossas naturezas têm a mesma base. Isto é a aplicação da verdade. Isto é, na realidade, do que fala Sekito. Não devemos ficar apegados às diferenças no uso porque estamos empregando a mesma natureza verdadeira, a natureza buda. Mas de acordo com a situação, empregamos a natureza buda de modos diferentes. Isto é como descobrir a natureza verdadeira dentro de nós mesmos na vida quotidiana.

Os versos seguintes são, “A vida comum encaixa-se no absoluto como uma caixa à sua tampa. O absoluto funciona junto com o relativo, como duas flechas se encontrando no meio do ar”. O relativo (ji) encaixa-se no absoluto (ri) como uma caixa e sua tampa. O relativo e o absoluto estão como duas flechas se encontrando. Como disse antes, ji significa as diversas coisas e eventos, incluindo as coisas que você tem em sua mente, as coisas nas quais está pensando. Ri é algo além do pensamento, além de nossa compreensão ou percepção. Novamente, relativo e absoluto são a mesma coisa, mas devemos compreendê-los de duas formas.

Onde há ji, há ri. Como uma caixa e sua tampa, eles se encaixam. Quando eu estou aqui, quer dizer que a natureza buda verdadeira está aqui. Neste momento sou a expressão da natureza buda. Eu não sou apenas eu. É mais que eu, mas estou expressando a natureza buda de minha própria maneira. Quando estou aqui quer dizer que todo o universo está aqui, tal como onde há uma lamparina a querosene, há combustível.

O modo como ri ajusta-se a ji é como duas flechas se encontrando em pleno vôo. Há uma velha história sobre isto. Na China, no período dos Estados em Guerra (430-221 aC), havia um mestre arqueiro famoso chamado Hiei (Ch. Feiwei). Kisho (Ch. Jichang), outro arqueiro muito bom, tornou-se ambicioso e desejava competir com Hiei. Assim esperou Hiei vir com seu arco e flecha. Vendo Kisho chegar, Hiei levantou seu arco e flecha. Ele tentou atingir Kisho primeiro, mas eles eram tão bons e rápidos que suas flechas se encontraram em pleno ar. S-s-s-t! Depois se tornaram como pai e filho.

Há alguma razão, por exemplo, para que eu esteja velho. Sem uma razão, eu não me teria tornado velho. E sem uma razão, eu não teria sido jovem. Por alguma razão, fiquei velho, então não posso me queixar. O que está por trás de eu ter-me tornado velho é o que está por trás de eu ter crescido como um menino bonito. [Rindo], Fui sustentado pelo mesmo pano de fundo, e serei sustentado por ele mesmo quando morra. Esta é a nossa compreensão.

Aceitar as coisas-como-é parece muito difícil, mas é muito fácil. Se você não acha fácil, deveria refletir porque é difícil. “Talvez”, você pode dizer, “seja pelo entendimento superficial, egocêntrico, que tenho de mim mesmo”. Então pode perguntar, “Porque tenho uma compreensão egocêntrica das coisas?” Mas uma compreensão egocêntrica das coisas também é necessária. Porque somos egocêntricos, trabalhamos duro. Sem uma compreensão egocêntrica, não podemos trabalhar. Sempre precisamos de alguma guloseima, e uma compreensão egocêntrica é um tipo de guloseima. Não é algo a ser rejeitado, mas algo que o ajuda. Você deveria ser grato por sua compreensão egocêntrica, que gera muitas perguntas. São apenas perguntas e não querem dizer muito. Você pode desfrutar de suas perguntas e respostas, pode brincar com elas, não precisa ser tão sério com elas. Esta é a compreensão do Caminho do Meio.

Podemos compreender o Caminho do Meio como ri, vacuidade, e ji, reidade. Ambas são necessárias. Devemos ter um modo egocêntrico de vida porque somos humanos e nosso destino é viver possivelmente por oitenta ou noventa anos. Teremos dificuldades que deveremos aceitar porque temos um modo egocêntrico de viver. Quando aceitamos dificuldades, é o próprio Caminho do Meio. Sem rejeitar seu modo de vida egocêntrico, você deve aceitá-lo - mas não fique grudado nele! Simplesmente desfrute sua vida humana enquanto viver. Isto é o Caminho do Meio, a compreensão de ri e ji. Quando há ri, há ji; quando há ji, há ri. Compreender a dificuldade deste modo, é desfrutar de sua vida sem rejeitar problemas ou sofrimento.

Notei uma coisa muito importante que não havia enfatizado antes: o sofrimento é uma coisa valiosa. Compreendi isto hoje quando estava conversando com alguém. Nossa prática poderia ser a prática do sofrimento. Como sofrermos, será a nossa prática. Ajuda muito. Acho que a maioria de vocês conhece o sofrimento quando sentem dor nas pernas quando sentam. E na vida diária vocês sofrem. O Bispo Yamada orientou alguns sesshins no Centro Zen. Ele enfatizou o unshu que Hakuin Zenji praticou por um longo tempo. Hakui teve tuberculose quando jovem e derrotou sua doença pela prática de unshu, que significa colocar ênfase na expiração –“m-m-m-mmm”. Como vocês dizem?

Aluno – Gemido?

Gemido? Quando vocês sofrem, dizem “m-m-m-mmm”.

Aluno – Suspiro?

Não, suspiro, não.

Aluno – Lamento?

Lamento, não. Mais forte, como um tigre com dor.

Aluno – Rosnado?

Rosnado? [Rindo] Ele dizia que sua respiração deveria ser como a respiração que você tem quando está sofrendo. Deveria colocar mais força em seu abdômen inferior e levar um tempo grande expirando. Vocês deveriam praticar “m-m-m-mmm” silenciosamente, de outra forma não será unshu. Quando vocês repetirem este unshu como se estivessem sofrendo algo físico ou mental, e dirigirem sua prática apenas para o sofrimento que vocês sentem, pode ser uma boa prática. Não é diferente de shikantaza.

Mas quando seu sofrimento está centrado no seu tórax e sua respiração é rasa, é agonia. Quando você sofre completamente, deve sofrer a partir de seu abdômen inferior. “M-m-m-mmm”. Você se sentirá bem quando fizer isto. É muito melhor do que nada dizer ou ficar deitado.

O Bispo Yamada teve uma dificuldade até recentemente. Agora ele está, talvez, “sobre as nuvens”. Mas quando ele estava em Los Angeles, sofreu muito. Naquela época eu não tinha muita experiência com doença e não podia entender. Eu não podia aceitar sua prática de unshu como uma pessoa doente podia. “M-m-m-mmm” . “O que é esta prática?” Pensava. Mas descobri porque ele fazia e descobri que ajuda bastante. Naturalmente ele compreendia o que era o sofrimento. Ninguém gosta de sofrer, mas nosso destino humano passa por ter sofrimento. Como sofremos é que é o ponto. Devemos saber como aceitar nosso sofrimento humano, mas não podemos ser completamente capturados por ele. Talvez essa fosse a prática do Bispo Yamada.

Para encontrar a unicidade de ri e ji, a unicidade da alegria e do sofrimento, a unicidade da alegria da iluminação dentro da dificuldade é a nossa prática. Isto é chamado o Caminho do Meio. Compreendem? Onde há sofrimento, há a alegria de sofrer, ou nirvana. Mesmo no nirvana você não pode se livrar do sofrimento. Dizemos que o nirvana é a completa extinção dos desejos, mas isto quer dizer ter uma compreensão completa e viver de acordo com ela. É zazen. Você se senta ereto. Você não está inclinado para o lado do nirvana ou inclinado para o lado do sofrimento. Você está aqui. Todos podem sentar e praticar o zazen.

Estou seguindo o poema de Sekito verso a verso, mas, na realidade, é preciso lê-lo direto do princípio ao fim. Não faz muito sentido quando você o comenta pedaço a pedaço. Sekito é muito rigoroso na conclusão, muito rigoroso. Você não pode escapar dele. Você não pode falar nada ou sentirá seu poderoso bastão. No seu tempo, o mundo do Zen era muito ruidoso, aí ele ficou muito aborrecido. “Calem-se!” foi o que disse na realidade. Desta forma eu não deveria falar tanto. Talvez eu já tenha me alongado demais. Desculpem-me.

17 agosto 2007

Manjusri passa o portal

Um dia, Manjusri estava do outro lado do portal quando Buda o chamou.

- Manjusri, Manjusri, porque você não entra?

- Nada vejo fora deste portal. Porque entraria?, respondeu Manjusri.

05 agosto 2007

Sandokai - 19º Comentário de Suzuki (1ª parte)

Cada coisa tem o seu próprio valor
E está relacionada com tudo o mais na função e na posição.
A vida comum encaixa-se no absoluto
Como uma caixa à sua tampa.
O absoluto funciona junto com o relativo,

Como duas flechas se encontrando no meio do ar.


Agora eu gostaria de falar como observamos as coisas e como compreendemos o valor das coisas. “Cada coisa tem o seu próprio valor e está relacionada com tudo o mais na função e na posição” – Bammotsu onozukara ko ari, masani yo to sho to wo iu beshi. Cada coisa (bammotsu) inclui os seres humanos, montanhas e rios, estrelas e planetas. Tudo tem sua função, virtude ou valor. Quando dizemos “valor”, habitualmente nos referimos a valor de troca. Mas aqui valor tem um significado mais amplo, para o qual empregamos a palavra ko. Ko não significa “função” ou “utilidade” no sentido habitual, mas, ao contrário, aplica-se mais a virtude ou mérito: alguém que vive uma vida meritória ou faz algo para a sociedade ou para a comunidade. Essa função terá virtude para nós. Mas quando dizemos “função”, você pode ainda se perguntar, “Função de quê?”

Aqui terei que usar alguns termos técnicos. Por exemplo, se você vê algo – [De repente o equipamento de som é ligado e Roshi ouve sua própria voz retornando dos alto-falantes]. Oh! [Risos]. Vocês ouvem minha voz. Vocês pensam que estão me ouvindo. O que vocês estão ouvindo pode ser minha voz, mas na realidade vocês estão ouvindo a função de alguma entidade universal chamada eletricidade que cobre o mundo todo - o universo todo. Esta é uma compreensão. Uma outra seria que vocês estão ouvindo a minha natureza bem como a natureza da eletricidade. Desta forma, quando vocês vêem ou ouvem algo, todo o universo está incluído. Quando compreendemos as coisas desta maneira, chamamos a compreensão de tai.

Tai quer dizer “corpo”. Mas é um corpo grande, ontológico que tudo inclui. E chamamos a natureza desse corpo de shō – não o sho nesses versos aqui, mas o shō que significa “a natureza básica de tudo”. Quando apreendemos isto que está além das palavras, chamamos esta compreensão de ri, ou verdade. Ri é algo além de nossa idéia de bom e mau, longo e curto, certo e errado.

No verso seguinte temos yo, que significa “utilidade” ou “uso”. Ko e yo podem parecer a mesma coisa, mas aqui – quando as empregamos como termos técnicos budistas – ko refere-se à função das coisas, ou ji, enquanto yo refere-se à função da verdade absoluta, ou ri. Nesses dois versos, Sekito está falando da unicidade de ko e yo. Ko e yo aplicam-se a cada ocasião e a todas as coisas. Assim, quando vocês encontram coisas, vocês deveriam saber que exatamente ali o ensinamento verdadeiro se revela. Vocês devem conhecer aquele lugar.

Às vezes empregamos ko e yo juntos. Quando dizemos koyo, compreendemos não apenas cada coisa tal como a vemos, mas também o que está por trás de cada coisa, que é ri. Devemos saber como usar as coisas. Saber como usar as coisas e saber o ensinamento, ou o modo como as coisas estão funcionando. Compreender as coisas significa compreender o que está por trás, o fundo. E compreender o valor das coisas é compreender como usá-las da maneira correta de acordo com o lugar e a natureza de cada coisa. Isto é ver as coisas-como-é. Habitualmente, mesmo quando vocês dizem, “Eu vejo as coisas-como-é”, vocês não vêem. Vocês vêem um lado da realidade e não o outro. Você não vê o fundo, que é ri. Vocês vêem apenas em termos de ji, o lado fenomênico de cada evento, e pensam que cada coisa existe apenas daquela maneira, mas não é assim. Todas as coisas estão mudando e estão relacionadas, uma à outra, e cada coisa tem seu fundo. Há uma razão pela qual todas as coisas estão aqui. Ver coisas-como-é quer dizer que ji e ri são um, que distinção e igualdade são um, e que a aplicação da verdade e o valor das coisas são um.
Por exemplo, pensamos que o universo existe apenas para os seres humanos. Hoje em dia nossas idéias tornaram-se mais amplas e nosso modo de compreender as coisas tornou-se mais livre, mas mesmo assim nossa compreensão é principalmente antropocêntrica, de modo que não apreciamos o verdadeiro valor verdadeiro das coisas. Vocês têm muitas perguntas para fazer-me, mas se vocês compreenderem este ponto claramente, não há muito que perguntar. A maior parte das questões e problemas é criada pelas idéias antropocêntricas, auto-referentes. “O que é morte e nascimento?” Esta já é uma idéia muito auto-centrada. Naturalmente, nascimento e morte é nossa virtude ou mérito. Morrer é nossa virtude, vir a esse mundo é também nossa virtude. Vemos como as coisas vão indo, como tudo está aparecendo e desaparecendo, tornando-se cada vez mais velho, ou ficando cada vez maior. Tudo existe deste modo. Então porque deveríamos tratar a nós mesmos de um modo especial? Quando dizemos “nascimento e morte”, quase sempre estamos nos referindo a nascimento e morte de seres humanos. Quando vocês compreenderem nascimento e morte como nascimento e morte de todas as coisas – plantas, animais e árvores – isto já não será mais um problema. Se for um problema, é um problema para todas as coisas, incluindo a nós mesmos. Um problema de todas as coisas não é mais um problema. Quase todos esses questionamentos vêm de uma compreensão estreita das coisas. É necessária uma compreensão mais ampla, mais clara. Vocês podem pensar que falar sobre esse tipo de coisa não os ajuda em nada. Um ser humano auto-referente pode ser difícil de ser ajudado!