21 fevereiro 2007

Sandokai - 14º Comentário de Suzuki

As visões variam na qualidade e na forma,
os sons diferem como agradáveis ou estridentes.
A fala comum e a refinada vêm juntas no escuro,
frases claras e obscuras são distinguidas na luz.

Tudo tem sua própria forma e natureza. Quando você ouve uma voz ela pode ser tanto agradável quanto desagradável. Aqui o Sandokai fala de visões e sons, mas o mesmo vale para todos os sentidos, bem como para a mente. Há gostos bons e ruins, sentimentos bons e maus, idéias agradáveis e desagradáveis. É o nosso apego a essas coisas que nos causa sofrimento. Quando você ouvir algo bom, você apreciará. Quando você ouvir algo ruim, você ficará aborrecido ou perturbado. Mas se você compreender a realidade completamente, você não ficará incomodado com as coisas. A próxima frase explica a razão: "A fala comum e a refinada vêm juntas no escuro" - An wa jochu koto ni kanai.
Compreendemos as coisas de duas maneiras: na escuridão (an) e na luz da forma (shiki), vemos as coisas como boas ou ruins. Sabemos que não existem coisas boas ou ruins em si. Somos nós que distinguimos as coisas como boas ou ruins e assim criamos o bom e o ruim. Não sofreremos tanto se soubermos disto. "Oh, é o que estou fazendo!"

As coisas em si não têm natureza boa ou ruim. Compreender isto é compreender as coisas na escuridão profunda. Então você não ficará envolvido na compreensão dualística das coisas como boas e ruins. Sekito diz, "A fala comum e a refinada vêm juntas no escuro". A escuridão inclui o bom e o ruim. As palavras boas e ruins não lhe perturbarão na escuridão profunda.

"Frases claras e obscuras são distinguidas na luz". Há palavras puras e palavras lamacentas. Na claridade temos palavras dualísticas, a dualidade do puro e do impuro.

Mesmo quando estamos aborrecidos com alguém, ainda podemos mostrar gratidão àquela pessoa. Porque conhece um aluno muito bem, às vezes, um professor ficará aborrecido com ele. O professor sabe que o aluno é muito bom, mas às vezes ele fica preguiçoso. O professor brigará com ele. Às vezes, o professor o elogiará e o encorajará. Mas isso não quer dizer que estejamos usando diferentes métodos ou atitudes. A compreensão é a mesma, mas a expressão é diferente. Os alunos que são pessimistas, que vêem as coisas muito negativamente, devem ser encorajados. Mas se eles são bons demais ou brilhantes demais, o professor deverá repreendê-los. Esse é o nosso modo de ser.

Dizemos "modo positivo" e "modo negativo". O modo positivo é reconhecer as coisas em termos de bom ou ruim, bonito ou feio. Se você se esforçar, será um bom aluno. Reconhecer o esforço de um aluno é o modo positivo. O modo negativo é não aceitar qualquer coisa. O que quer que você diga, receberá trinta pancadas. Positivo e negativo, às vezes um, às vezes outro. Habitualmente somos muito apegados seja ao lado claro, seja ao lado escuro das coisas.

Você conhece este famoso koan? Um monge perguntou a um mestre, "Está tão quente. Como é possível fugir do calor?" O mestre disse, "Porque você não vai para um lugar que não seja frio nem quente?" O discípulo disse, "Existe um lugar que não seja nem frio nem quente?" O mestre disse, "Quando está frio, você deve ser um buda frio. Quando está quente, você deve ser um buda quente". Você pode achar que se praticar o zazen atingirá um estágio onde não seja nem quente nem frio, onde não haja nem prazer nem sofrimento. Você pode perguntar, "É possível alcançar este estágio se praticarmos o zazen?" O professor de verdade dirá, "Quando você sofrer, deve sofrer. Quando você se sentir bem, deve se sentir bem". Às vezes você será um buda sofredor. Às vezes você será um buda chorão. E às vezes você será um buda muito feliz.

Esta felicidade não é exatamente a mesma felicidade que as pessoas normalmente têm. Há uma pequena diferença, e esta diferença é significativa. Os budas têm este tipo de serenidade porque conhecem ambos os lados da realidade. Não são perturbados por algo ruim, nem ficam em êxtase por algo bom. Eles possuem uma alegria verdadeira que os acompanha sempre. O tom básico da vida permanece o mesmo, e nele há algumas melodias alegres e algumas melodias tristes. Esse é o sentimento que uma pessoa iluminada pode ter. Quer dizer que quando está quente ou quando você está triste, você deve ficar completamente envolvido em estar quente ou triste, sem ligar para a felicidade. Quando você estiver feliz você deve simplesmente desfrutar a felicidade. Podemos agir assim porque estamos preparados para qualquer coisa. Ainda que as circunstâncias mudem subitamente, não nos importamos. Hoje podemos estar muito felizes e não sabemos o que nos acontecerá no dia seguinte. Podemos aproveitar o dia de hoje completamente quando estamos prontos para o que acontecerá amanhã. Você não faz isso estudando uma lição, mas apenas através da sua prática.

Essas são as palavras de Sekito. Mais tarde, no tempo de Tozan (três gerações depois), as pessoas ficaram enredadas em jogos verbais sobre claridade e escuridão. Elas gostavam de ficar falando sobre o lado claro, o lado escuro e o caminho do meio e perderam o que era importante para obter a liberdade real.

Dogen Zenji, que viveu ainda mais tarde, não se deixou aprisionar tanto por esses jogos de palavras. Mais que isso, enfatizou como escapar dos jogos de palavras apreciando plenamente as coisas momento a momento. Ele estava mais interessado no koan do tipo, "Quando está frio, você deve ser um buda frio; quando está quente. você deve ser um buda quente". Isto é tudo. O caminho de Dogen é ficar envolvido completamente no que você estiver fazendo sem ficar pensando em várias coisas. Este tipo de consecução só é alcançado através da prática real, não através das palavras.

As palavras podem ajudar a sua compreensão das coisas. Quando você está muito dualista, ficando confuso, elas podem ajudá-lo. Mas se você estiver interessado demais em ficar falando sobre essas coisas, você perderá seu caminho. Devemos ficar interessados no zazen real, não nessas palavras, e devemos praticar o zazen real.

O caminho de Dogen Zenji é descobrir o significado de cada ser - como um grão de arroz ou um copo d'água. Você pode dizer que um copo d'água ou um grão de arroz são coisas que você vê na claridade. Mas quando você respeita plenamente um grão de arroz, quero dizer, quando você o respeita realmente como respeita o próprio Buda, você compreenderá que um grão de arroz é absoluto. Quando você vive completamente envolvido no mundo dualístico, você tem o mundo absoluto em seu verdadeiro sentido. Quando você pratica o zazen, sem buscar iluminação ou buscar qualquer coisa, há, então, verdadeira iluminação.

13 fevereiro 2007

Sandokai - 12º Comentário de Deshimaru

O fogo esquenta, o vento se move,
A água é úmida, a terra é dura.
Para os olhos, há a cor,
Os ouvidos percebem os sons, o nariz, os odores,
A língua diferencia o salgado do doce.
Mas todas as existências, como as folhas da árvore,
São alimentadas pela raiz.
A origem e o fim procedem da mesma fonte: ku.
A origem e o fim regressam ao nada.
Nobre ou vulgar são empregáveis a vosso gosto!

O fogo da lenha queimando na lareira e o ferro em fusão no cadinho, não atingem a mesma temperatura. No entanto, a fonte, a origem é o fogo. Não podemos ver a origem, ela existe na profundeza obscura.

Não podemos compreender a essência do ar, a fonte do vento no céu.

O ar se move de uma zona de alta pressão para uma zona de baixa pressão - o vento está criado! Vento suave ou violento, pode até ser mesmo um tufão! Na água, também, numerosos fenômenos podem se produzir. Igualmente o tempo pode tornar-se pedra...

Com os olhos fechados não podemos compreender o que é a visão mas, se os abrimos, múlltiplas cores aparecem. As sete notas da escala tornam-se, na música, milhares de sons diferentes. Qual é a fonte, a origem de todas essas vibrações?

Um dia, num templo, um jovem monge perguntou a seu Mestre: "O sino do templo ressoa, meus ouvidos escutam, mas onde se encontra o som?" Esta pergunta transformou-se em um célebre koan.

O nariz percebe numerosos odores diferentes. Se não comemos, a língua não pode degustar nada, mas é função da língua perceber e diferenciar os paladares, doce, salgado, amargo, suave. Se colocarmos um pedaço de carne no nariz de um gato e ele só perceber o cheiro, lamberá o prato.

Meu Mestre Kodo Sawaki repetia sempre: "Uma certa pessoa que tinha um pedacinho de cocô na ponta do nariz perguntava: 'Mas quem é que está fedendo aqui?"

Sem objeto e sem propósito, nosso espírito não é tão complicado. Um objeto, um propósito e numerosos fenômenos se elevarão. Uma única e mesma raiz produz numerosas folhas. De uma única fonte, numerosos fenômenos podem surgir. Mas a origem e o fim são, em última instância, ku. Há numerosas concepções, rico ou pobre, Deus ou Buda, homem ou demônio, e cada uma tem sua utilidade, mas, em definitivo, a fonte original e o destino último retornam ao nada.

02 fevereiro 2007

Sandokai - 13º Comentário de Suzuki (cont.)

No texto está dito, "Um e todos, o sujeito e o objeto estão relacionados e, ao mesmo tempo, são independentes". Embora todas as coisas estejam interrelacionadas, todos - todos os seres- podem ser chefe. Cada um de nós pode ser um chefe porque estamos intimamente relacionados. Quando digo "João", João já não é apenas João. Ele é um dos estudantes do Centro Zen e ver João é ver o Centro Zen. Quando você vê João, você compreende qual é o Centro Zen. Mas se você pensar, "Ah, ele é apenas o João", sua compreensão não está boa o bastante. Você não sabe quem é João. Quando você tem um bom conhecimento das coisas por elas mesmas, você compreenderá o mundo inteiro através das coisas. Cada um de nós é o chefe do mundo inteiro. Quando você compreender isto, você se dará conta de que todas as coisas estão interrelacionadas, embora elas também sejam independentes. Cada um de nós é completa e absolutamente independente. Nada há para comparar. Vocé não é nada mais que você.

Devemos compreender as coisas de duas maneiras. Uma maneira é compreender que as coisas estão interrelacionadas. Outra, é compreender a nós mesmos como bastante independentes de tudo. Quando incluímos tudo como nós mesmos, somos completamente independentes porque não há nada com o que nos possamos comparar. Se há apenas uma coisa, como você pode comparar algo com ela? Porque não há nada com o que você se possa comparar, isto é independência absoluta, não interrelacionada, absolutamente independente.

Em certo momento o texto diz, "sujeito e objeto". Os sentidos - nossos olhos, ouvidos, nariz, lingua e corpo - são portas, e os objetos sensíveis entram por essas portas. Eles são interrelacionados mas ao mesmo tempo, independentes. Para os olhos, há algo a ver, para os ouvidos, algo a ouvir, para o nariz, algo a cheirar, para a língua, algo a degustar, para o corpo, algo a tocar. Há cinco tipos de objetos do sentido para os cinco órgãos dos sentidos. Este é o senso comum budista. A referência a eles no poema é apenas uma maneira de dizer "tudo". É o mesmo que dizer "flores e árvores, pássaros e estrelas, rios e montanhas", embora digamos "cada sentido e seus objetos".

Deste modo os vários seres que vemos e ouvimos estão interrelacionados, embora ao mesmo tempo cada ser seja absolutamente independente e possua seu próprio valor. Este valor chamamos ri. Ri é o que dá significado a algo e não é apenas teoria. Ainda que você não atinja a iluminação, dizemos que você já dispõe da iluminação. Esta illuminação é o que chamamos de ri. O fato de que algo exista aqui é sinal de que há uma razão para isto. Não conheço a razão. Ninguém conhece. Tudo deve ter seu próprio valor. É muito estranho que duas coisas não sejam a mesma. Não há nada com o que você se possa comparar, de tal forma que você tem seu próprio valor. Este valor não é um valor comparativo ou um valor de troca, é mais que isto. Quando você está simplesmente sentando na almofada em zazen, você tem seu próprio valor. Embora este valor esteja relacionado a tudo, este valor também é absoluto. Talvez seja melhor não dizer muito.

"Estão relacionados, mas funcionam diferentemente, mantendo cada um o seu próprio lugar". Um pássaro vem do sul na primavera e volta no outono, atravessando várias montanhas, rios e oceanos. Deste modo, as coisas estão interrelacionadas incessantemente, por toda a parte. Ainda que o pássaro permaneça em algum lugar, em algum lago, por exemplo, seu lar não é apenas o lago, mas também o mundo inteiro. Um pássaro vive desta forma.

Dizemos, às vezes, no Zen que cada um de nós é íngreme como um penhasco. Ninguém pode escalar-nos. Somos completamente independentes. Mas quando você me ouve dizer isto, deve compreender que existe o outro lado também - que estamos incessantemente interrelacionados. Se você não entende as palavras Zen, você não entende o Zen e você ainda não é um estudante Zen. As palavras Zen são diferentes das palavras comuns. Elas cortam em ambas as direções, como uma espada de dois gumes. Você pode pensar que estou cortando para a frente, mas não, estou cortando para trás também. Observe meu bastão. Percebe? Às vezes repreendo um aluno - "Não!". Os outros alunos pensam, "Oh!, ele foi repreendido", mas isto não é assim na realidade. Porque não posso repreender aquele ali, tenho que repreender aquele que está perto de mim. Mas a maior parte das pessoas pensa, "Oh, aquele pobre rapaz está sendo repreendido". Se você pensa desta maneira, você não é um estudante Zen. Quando alguém é repreendido, você deve escutar com atenção; você deve estar bem alerta para saber quem está sendo repreendido. É deste modo que treinamos.

Quando eu era um discípulo muito jovem, meus irmãos de dharma e eu fomos a algum lugar com nosso professor e voltamos muito tarde. Há muitas cobras venenosas no Japão. Meu professor disse, "Vocês estão usando tabi [meias brancas usadas com sandálias] e eu não. Uma cobra pode me picar, vocês vão na frente". Concordamos e caminhamos à sua frente. Assim que chegamos no templo ele nos disse, "Sentem-se todos". Não sabíamos o que havia acontecido, mas sentamo-nos todos à sua frente. "Que rapazes sem consideração vocês são!", disse. "Quando não estou usando tabi, porque vocês usam tabi? Eu adverti vocês: 'Eu não estou usando tabi'. Vocês deviam ter compreendido e tirado seus tabis também, mas em vez disto vocês ficaram com eles e andaram à minha frente. Como vocês são tolos, rapazes!".

Devemos estar alertas o bastante para ouvir o significado por detrás das palavras. Isto é tudo. Devemos dar-nos conta do algo mais que é dito.

Uma noite, quando eu estudava no mosteiro Eihei-ji, abri o lado direito da porta corrediça shoji - porque é costume abrir aquele lado - mas fui repreendido. "Não abra aquele lado!", disse um dos monges mais antigos. Então, na manhã seguinte, abri o lado esquerdo e fui repreendido de novo: "Porque você abriu aquele lado?" Não sabia o que fazer. Quando abria o lado direito, era repreendido, quando abria o lado esquerdo, era repreendido de novo. Não conseguia descobrir porque. Mas finalmente me dei conta de que, na primeira vez, havia um convidado no lado direito e, na segunda, o convidado estava do lado esquerdo. Assim, em ambas as vezes abri o lado que expunha o convidado. Foi por isso que fui repreendido. No mosteiro de Eihei-ji nunca diziam o porquê, simplesmente nos repreendiam. Suas palavras tinham dois gumes.

As palavras do Sandokai também têm dois gumes. Um lado é a interdependência (ego) e um lado é a independência absoluta (fuego). Esta interdependência avança por toda a parte, mas as coisas permanecem em seus próprios lugares. Este é o ponto principal do Sandokai.