24 fevereiro 2008

Hokyo Zanmai - 5º Comentário de Deshimaru

Afastar-se ou tocar:
ambos estão errados.
Pois é como um grande fogo,
útil, mas perigoso.
"Se quisermos tocar ou pegar
Um gato,
O gato escapará..."
Mas ao contrário, se aborrecermos o gato, ele escapará do mesmo modo.
"Nem uma nem outra coisa valem". Igualmente:
"Amada em demasia, a mulher escapa...
Pouco amada, também escapa!"
É um problema de consciência inerente ao nosso espírito, é o problema do grande fogo:
"Se o tocarmos, nos queima.
Se dele nos afastarmos,
Sentimos frio".
A consciência durante o zazen é um ponto essencial e difícil.
Em que consiste o estado de Hishiryo? Qual é a verdadeira concentração? Repito sempre: "mushotoku", "inconscientemente"... "naturalmente", "automaticamente". À direita, à esquerda... fica difícil escolher. Limitar, fechar em categorias, é cair na contradição. Não há que buscar o satori nem querer cortar as ilusões. Tudo deve ser natural, automático, insconsciente. Quando se faz zazen, pode-se alcançar esse estado de espírito.
Em que consiste "isto"? É o dharma. O dharma é um grande fogo, a verdade, samadhi do espelho precioso: zazen, satori. Desta forma, não devemos fugir do satori, nem tocá-lo. Não devemos nos perder. Isto não se aplica somente ao satori, mas a todos os princípios de nossa vida.
O que é o Caminho do Meio? Qual o segredo das Artes Marciais?
"Não há
que perseguir as coisas
nem recusá-las".
Não pensar na vitória nem na derrota em sua prática é a grande contradição das Artes Marciais, mas também é o seu segredo.
Fica difícil expressar-se, dar a resposta correta apenas com palavras.
Uma história japonesa: Uma noite, um homem visita seu amigo. O amigo diz ao abrir a porta:
- Olá, Yoshiko!
O homem lhe responde:
- Mas porque me chamas de Yoshiko?
O outro argumenta:
- Se não és Yoshiko... serás talvez Kushiko?
Silêncio.
- Então quem és?
- Eu sou eu - replica o outro.
Nem o passado nem o futuro devem influenciar nossos pensamentos. Seria inútil. Vosso pensamento é um "aqui e agora". "Aqui e agora" é a vossa liberdade.
Este é o "ponto médio".
Tocar: se um homem deseja uma mulher abertamente ou rapidamente em demasia, perdê-la-á.
Nem tocar, nem deixar de tocar: o verdadeiro amor. Não é fácil.
No zazen, o excesso de pensamentos ou o torpor, são atitudes falsas. Então, o que fazer? Os pensamentos não devem vir da consciência pessoal, mas serem inconscientes, naturais, automáticos. Quereis obter o satori, a verdade: o grande fogo se aproxima demais e queima. Fugis do satori, da verdade: o fogo se afasta demais e sente-se frio. O Caminho do Meio, nem à direita, nem à esquerda, é um caminho difícil, que implica no abandono de todas as noções contraditórias.
Eis aqui a história de Tokujo, o barqueiro, e de seu discípulo Kassan. Durante vinte anos Tokujo foi instruído pelo Mestre Tosen, praticando zazen com ele. Antes de morrer, Tosen lhe deu o shiho. Então Tokujo se fez barqueiro e durante trinta anos ficou aguardando o verdadeiro discípulo. O poema diz:
"Queria pescar um grande peixe,
mas ninguém nadava
naquelas águas demasiadamente puras".
Para fazer suas varas de pescar, havia cortado todos os bambus do mato e se dispunha a replantá-los quando, um dia, um homem chamado Kassan chegou às margens do rio. Imediatamente Tokujo compreendeu que aquele homem era "o" grande peixe.
- De onde vens?
- Não venho de nenhuma parte.
O discípulo parecia interessante.
- Quem te educou?
- Zazen me educou.
Ocorreu um grande mondo. Tokujo queria conhecer a fundo o novo discípulo e, à guisa de resposta às palavras de Kassan, Tokujo o jogava na água a cada vez.
- Tuas respostas, ainda que sejam exatas, não são corretas, é o mesmo que golpear um burro.
E, com um pontapé, Tokujo jogava Kassan na água. Quando Kassan abria a boca para responder, Tokujo gritava:
- Não quero discutir contigo!
E plof!... voltava a jogá-lo na água.Kassan obteve um grande satori. Então Tokujo o retirou da água e, docemente, tomou sua mão.
"Faz trinta anos que aguardo este momento!
Hoje um grande peixe fisgou o anzol!
Minha pesca, portanto, terminou".
Tokujo transmitiu o shiho a Kassan e lhe deu seu kesa. Imediatamente a chalana virou e Tokujo morreu. As histórias da transmissão são sempre singulares. Kassan, o grande peixe, chegou a ser um grande Mestre Zen.
Qual o verdadeiro sentido dessa história? Porque responder com uma linguagem complicada? Uma só palavra e um só gesto bastam. É preciso responder mas sem servir-se da linguagem. Pois, ainda que seja uma resposta exata, nunca será correta. Inclusive sem ser adequada... Kassan foi jogado na água. Ele "bebeu no copo". Realizou sua própria natureza. Satori. E o Mestre, morto, fundiu-se com o rio. Zazen, ele mesmo, é o grande fogo do Hokyo Zanmai. Isto não se explica com a linguagem. É o shin den shin de Tokujo a Kassan.

18 fevereiro 2008

Hokyo Zanmai - 4º Comentário de Deshimaru

Se as seguirdes [as palavras], sereis pegos em armadilhas,

se as negligenciardes, tombareis na dúvida.

As palavras do Mestre não tocam o discípulo ao qual falta profundidade. Do mesmo modo, o Mestre que duvida demais de seu discípulo não poderá transmitir-lhe seus ensinamentos. Devemos possuir a compreensão além das palavras. Este é o ensinamento desse quarto poema. Pelas palavras, compreender o que é a consciência. O importante é o que se quer dizer, não o que se diz. A maior parte das pessoas, escravas das palavras, aí se deixam capturar.
No mondo, a resposta do Mestre não é uma resposta como de um exame. O Mestre deve ter uma compreensão completa do discípulo, compreender seu estado de consciência pela cor de seus olhos, de seu rosto, compreender por intuição...
Se somos perturbados pelas palavras, não podemos sentir o verdadeiro estado de consciência escondido por detrás delas e caímos em armadilhas. Se duvidarmos dessas palavras, chegamos ao impasse do ceticismo. A importância essencial do mondo vem da colocação em prática desses pontos.
Compreender a consciência de nosso interlocutor... Se o Mestre se deixa perturbar pelas palavras de seu discípulo, não pode compreender sua vontade nem sua consciência. Durante uma conversa, devemos ser capazes de apreender o pensamento de nosso interlocutor, ler em seu cérebro, sem ser influenciado por suas palavras. O Mestre Zen compreende desde a primeira palavra, e pelo tom da voz. A linguagem não é tão importante. Algumas pessoas só se expressam em linguagem diplomática. Elas se escusam... elas se escusam, e seu espírito escapa. A linguagem pode terminar em vã discussão. Por isto o Mestre Zen tem sempre um bastão!
Não deixar traços pela linguagem.
O silêncio é o que há de melhor.

07 fevereiro 2008

Hokyo Zanmai - 3º Comentário de Deshimaru

Seu sentido não está nas palavras,
mas um instante decisivo o faz aparecer.


Este poema expõe as diferenças entre a consciência e a linguagem. Nossa consciência difere de nossa linguagem, da maneira de nos expressarmos. Se queremos beber um café ou comer um bolo, pedimos ao garçom o que queremos. O garçom, não comete, por assim dizer, nenhum erro, e para isso as palavras bastam. Mas no Zen, dizer, "tomemos um chá", pode tornar-se um koan e encobrir um significado profundo. Em um templo Zen, se um Mestre nos pede para sentarmo-nos, este "sentem-se", dito pelo Mestre, pode ser um koan em si mesmo. Um outro exemplo: o kwatz dos Mestres Zen está muito longe do canto dos corvos. Nos templos Zen, durante os mondos, o Mestre pronuncia às vezes a palavra kwatz ou a palavra to, "silêncio".
No Zen, uma linguagem verdadeira, exata e simples, se cria. Esta linguagem é como os sons dos templos: sino do despertar, madeira dos chamados, som das claquetes, madeira do mokugyo, gongo, tambor do samu, metal da cozinha. Criam-se sons e, às vezes, essa linguagem pode ser poema ou canto. Assim, alguns sutras tornam-se poemas, como o Shin jin Mei, o Hokyo Zanmai e o Shodoka, mas a verdadeira essência do espírito não pode ser expressa em palavras. Os mudos não podem falar e, apesar disso, podem explicar de um modo profundo sua consciência e seu espírito. Se sentem necessidade, fazem gestos. No Zen também, encontram-se muitos gestos! O que é o Zen? Um estalar de dedo!
Os haikai japoneses não são verdadeiramente poemas, mas frases de Zen, sentenças breves. Expressar a natureza, a estação, ao ritmo de 5-7-5, em francês ou português, torna-se praticamente impossível. Eis aqui um haikai:
"Um velho charco
Uma rã mergulha
O ruído da água".

Este poema tão pequeno, muito profundo, tem apenas três versos.

Mestre Bassho, ao visitar um velho templo, ficou muito impressionado por uma cena de uma calma profunda:
"Um velho charco, a floresta, o zazen do monge
no dojo e, subitamente, nesta

agradável tarde de primavera,
uma rã salta na água.
Plof!"

O som da água rompeu a imobilidade da atmosfera!

E, após o mergulho da rã, tudo voltou ao silêncio!

O sentido profundo desse haikai é o silêncio perfeito. Açambarcados pela vida quotidiana, não podemos sentir nem os barulhos nem o verdadeiro silêncio.
Mas, pela prática do Zen, podemos experimentar esse verdadeiro silêncio
Esse poemas Zen atingem uma grande profundidade. Matéria do não-consciente, os versos, autênticos, surgem anteriores à nossa vida e nossa morte, eles vêm do túmulo, anteriores à matéria, ao espírito, e compreendem o cosmo ilimitado, infinito, eterno. O silêncio é tudo e vem automaticamente, naturalmente, inconscientemente.
No templo de Avallon, compus estes haikai:
"Após o zazen
Queimo algum incenso
Uma noite de primavera".

"Sob as nuvens sem consciência
Revolvo a terra do campo e semeio o grão
Próximo à aldeia do moinho".

Como na pintura sumi-e deve-se compreender o espaço, durante uma conversa devemos integrar o silêncio.
"Sobre a areia da praia,
Traços de passos.
Longo é o dia da primavera".


Uma peça muito decorada torna-se pesada, enquanto uma peça sóbria é sinal de pura beleza. Assim , no haikai, como nas respostas do mondo, a expressão deve ser breve. Durante o mondo, às vezes, há apenas uma palavra em minhas respostas: "Não!", "Concordo!", ou então dou uma longa explicação. Um Mestre pode responder com o kwatz ou com as mãos dando uma bofetada. Mas, em todos os casos, o sentido da resposta é muito profundo.


Eis aqui um outro haikai de Bassho:

"Silêncio
A voz da cigarra
Penetra a rocha".

É o sabor do Zen. Se vocês considerarem apenas as palavras, o alcance é bem curto.
"Tranquilidade.
Uma folha do castanheiro cai
Na água clara".

É preciso ir por detrás das palavras. Está dito no Zazenshin:
Tori Tonde Tori No Gotoshi
"O pássaro voa no céu,
Ele tem a verdadeira liberdade do pássaro".