28 setembro 2006

Sandokai - 8º Comentário de Suzuki

“Entre seres humanos não há sábios nem tolos” – Ninkon ni ridon ari. No Sandokai este ponto não é tão importante, mas é interessante compreender que potencialidade humana está presente no Budismo a fim de aprofundar nossa compreensão da prática e porque é necessário praticar zazen. Nin é “humano”, kon é “raiz” ou “potencialidade”; assim ninkon é “potencialidade humana”. Ri aqui quer dizer “alguém que tem alguma vantagem” e don significa “alguém que tem uma desvantagem”. Assim a raiz da potencialidade humana é tanto nossa vantagem quanto nossa desvantagem.

A capacidade da mente humana tem três aspectos: potencialidade, inter-relação e adequação. Temos a potencialidade de nos tornarmos Buda . É como um arco e flecha. Porque um arco e uma flecha têm potencialidade, se você usá-la, a flecha voará. Se você não usá-la, a flecha não voará. Se você estiver pronto para ser um buda, mas não praticar zazen, ou Buda não lhe ajudar, você não pode ser um buda, ainda que você tenha potencialidade.

Potencialidade tem dois significados. Um é “possibilidade”. Do ponto de vista de nossa natureza, temos a possibilidade de sermos budas. Por outro lado, se você me observar em termos de tempo, mesmo que eu tenha a possibilidade, se ninguém me ajuda, não consigo ser um buda. Do ponto de vista do tempo, potencialidade quer dizer algo como “possibilidade futura”. Este é o outro significado.

Quando compreendemos potencialidade em termos de natureza, podemos ser bondosos e generosos com todos porque todos têm naturalmente a possibilidade de se tornarem um buda. Mas quando pensamos em termos de “quando”, devemos ser muito rigorosos. Compreendem? Se vocês perderem este tempo, se vocês não fizerem um bom esforço esta semana ou este ano, se vocês disserem sempre “amanhã, amanhã, amanhã”, perderão a possibilidade de atingir a iluminação, ainda que tenham possibilidade.

Da mesma forma acontece com sua prática. Quando não pensam sobre tempo, vocês podem ser generosos com todo o mundo e podem tratar as pessoas muito bem. Mos quando vocês pensam sobre tempo, sobre hoje e amanhã, vocês podem não ser tão generosos porque estarão perdendo tempo. Assim dizemos, “Faça isto e farei aquilo”, “Ajude esta pessoa e ajudarei aquela outra”. Deste modo devemos ser muito rigorosos conosco. Por isso analisamos ki, potencialidade , tanto como “possibilidade” quanto como “possibilidade futura”.

Quando vocês compreendem potencialidade desta forma, podem trabalhar e praticar muito bem, às vezes de uma maneira muito generosa e às vezes de um modo muito rigoroso. Temos dois lados em nossa prática ou em nossa compreensão de ki. Este é o primeiro significado de ki – potencialidade.

Ki também significa “inter-relação” – neste caso, inter-relação entre um buda e alguém com uma natureza boa, e entre um buda e alguém com uma natureza má. Lamento dizer “natureza má”, mas tentativamente devo usar essas palavras. Devemos encorajar as pessoas que têm uma natureza boa oferecendo-lhes alguma alegria da prática. Quando praticamos com alguém que aparentemente não é tão bom, sofreremos com aquela pessoa. Este é o nosso entendimento. Assim, ki às vezes significa a “inter-relação entre alguém que ajuda e alguém que é ajudado”. Isto é também chamado jihi. Ji aqui quer dizer encorajar alguém. Hi, oferecer felicidade. Jihi habitualmente é traduzido como “amor”. O amor tem dois lados. Um, é oferecer alegria, yoraku, outro é diminuir o sofrimento, bakku. Para diminuir o sofrimento de alguém, nós sofremos com esta pessoa, compartilhamos seu sofrimento. Isto é amor.

Desta maneira, se alguém é muito bom, podemos compartilhar a alegria de praticarmos com ele, oferecendo-lhe uma boa almofada, um bom zendô, ou algo parecido. Mas um zendô não quer dizer nada para alguém que está sofrendo muito. Qualquer coisa que lhe dermos pode não ser aceita. Ele pode dizer, “Não preciso disto. Estou sofrendo muito. Não sei porquê. Neste momento, livrar-me do sofrimento é a coisa mais importante para mim. Você não pode ajudar-me, nada pode ajudar-me.” Quando vocês escutam isto, devem ser como o Bodhisatva Avalokitesvara – devem tornar-se como quem está sofrendo e devem sofrer como aquela pessoa que sofre. Em função de seu amor inato, seu amor instintivo, vocês compartilham o sofrimento. Isto é amor em seu sentido puro. Assim, ki significa não apenas “potencialidade” ou “possibilidade”, mas também “inter-relação”.

O terceiro significado de ki é “bons meios” ou “uso adequado”, algo como encontrar a tampa certa para um vaso. A banheira japonesa tradicional é de madeira e depois que nos banhamos, nós a cobrimos com uma grande tampa de madeira. A tampa não pode ser usada para um vaso. É muito grande. Assim o vaso deve ter sua própria tampa. Neste sentido, ki quer dizer “uso adequado”. Se vocês vêem pessoas sofrendo por conta de sua ignorância, porque não sabem o que estão fazendo, vocês choram, sofrem com elas. Quando vocês vêem pessoas que apreciam sua verdadeira natureza, vocês devem compartilhar sua alegria e encorajá-las. Isto é ter uma relação boa, adequada.

O próximo verso diz, “Mas no caminho não há patriarcas do sul ou do norte”. Isto é muito verdadeiro. O ensinamento de Jinshu é bom e o ensinamento do Sexto Patriarca Eno é bom. O caminho de Jinshu é bom para quem estuda as coisas vagarosa e deliberadamente. O ensinamento do Sexto Patriarca é bom para uma pessoa que tem uma mente aguda e rápida. Um professor pode explicar o ensinamento de Buda detalhadamente de tal forma que o aluno possa compreender palavra por palavra. Mas para outro aluno não é preciso argumentar usando tantas palavras. Depende da pessoa. A maneira de ensinar de um grande professor será singular. Mas não há diferença na compreensão verdadeira.

As pessoas ficam confusas por conta do modo como avaliamos as coisas, discriminando entre o tolo e o esperto. Mas, do ponto de vista dos Patriarcas, eles são o mesmo. Todos os Patriarcas entenderam este ponto. Não há Patriarca do Norte nem Patriarca do Sul. Esta é a compreensão de Sekito.

A propósito, Sekito foi na realidade discípulo do Sexto Patriarca, mas depois que o Sexto Patriarca morreu, Sekito tornou-se discípulo de Seigen, o Sétimo Patriarca. Este tipo de coisa ocorre com muita freqüência. Eu tenho alunos aqui, mas se eu morrer, aqueles que não completaram seu treinamento serão alunos de meus alunos. Estudar o Budismo não é como estudar outras coisas. Pode levar tempo até que vocês aceitem o ensinamento completamente. O fator mais importantes são vocês, mais que seu professor. Quando vocês estudam duramente, o que recebem de seu professor é o espírito do estudo. Aquele espírito que será transmitido de mão calorosa a mão calorosa. Vocês devem fazê-lo! Isto é tudo. Não há nada a ser transmitido a vocês. E o que vocês aprendem pode ser de livros ou de outros professores, de forma que temos tanto outros professores quanto um mestre. Alguns de vocês são meus discípulos. Chamamos os discípulos de um mestre de deshi. Aqueles entre vocês que não são meus discípulos são chamados de zuishin. Um zuishin é um seguidor. Alguém pode ficar muito tempo com algum professor, às vezes mais do que o período que alguém fica com seu mestre. Quando eu tinha trinta e dois anos, meu mestre faleceu, e a seguir estudei com Kishizawa Roshi e a maior parte da compreensão que tenho adquiri de Kishizawa Roshi. Mas meu mestre foi Gyokujun So-on. De qualquer modo, não há nenhum Patriarca do Sul nem do Norte. A verdade é uma só.

Praticar não é colecionar coisas e colocá-las em sua cesta, mas sim encontrar algo em sua manga. O que ocorre é que antes que vocês estudem duramente, vocês não sabem o que têm em suas mangas. “Buda e eu temos a mesma coisa. Oh! Isto é surpreendente!” Este é o espírito que devemos ter. Não importa o que eu diga, vocês devem estudar muito. Se vocês não gostam do que eu digo, vocês não devem aceitar. Está tudo bem. Eventualmente vocês podem aceitar. Se vocês disserem, “Não!”, eu direi, “Tudo bem, mas prossigam e estudem muito!” Eu creio que esta é a característica do Budismo. Nossa abordagem é muita aberta e, como Budistas, vocês têm uma enorme liberdade em seu estudo. O quer que vocês digam, está bem. De tal forma que não há nenhum Patriarca do Sul ou do Norte.

20 setembro 2006

Sandokai - 7º Comentário de Suzuki

O próximo verso diz “Entre seres humanos, há sábios e tolos”. É difícil traduzir esta passagem. Ela se refere à disputa entre as escolas do Norte e do Sul. A pessoa inteligente nem sempre tem vantagens para estudar ou aceitar o Budismo, e não é sempre o tolo quem tem dificuldades. Um tolo é bom porque é tolo. Um sábio é bom porque é sábio. Ainda que você os compare, não poderá dizer qual é melhor.
Eu não sou tão sábio, por isso compreendo isto muito bem. Meu mestre (Gyokujun So-on) sempre se dirigia a mim como “Seu pepino vigarista!” Fui seu último discípulo, mas tornei-me o primeiro porque todos os outros bons pepinos fugiram. Talvez porque fossem espertos demais. De qualquer modo, não fui esperto a ponto de conseguir fugir e fui pego. Minha estupidez era uma vantagem para estudar o Budismo. Quando todo o mundo foi embora e eu fiquei sozinho com meu mestre, fiquei muito triste. Mas eu havia deixado minha casa por minha própria escolha. Meus pais disseram, “Você é muito jovem. Devia ficar aqui”. Mas eu tinha que ir. Depois de deixar meus pais, eu senti que não podia voltar para casa. Eu podia, mas pensava que não podia. Então eu não tinha nenhum lugar para ir. Esta é uma das razões pela qual eu não fugi. Outra foi porque eu não era suficientemente esperto. Uma pessoa esperta nem sempre tem vantagem e um tolo é bom porque é tolo. Este é o nosso entendimento.Na realidade, não há tolos nem sábios. Qualquer das alternativas não é tão fácil. Há dificuldades tanto para o sábio quanto para o tolo. Por exemplo, um tolo tem que estudar duro e ler um livro várias vezes porque não é tão esperto. Uma pessoa esperta esquece rapidamente. Pode aprender rapidamente, mas o que aprende não fica por muito tempo. Para o tolo, toma tempo para memorizar algo, mas se ele lê muitas vezes e se recorda do que leu, aquilo não irá embora tão cedo. Ser sábio ou tolo não faz muita diferença.

13 setembro 2006

Sandokai - 6º Comentário de Suzuki

Um outro modo de explicar a realidade se dá pela diferenciação. Diferenciação é igualdade e as coisas têm igual valor porque são diferentes. Se homens e mulheres fossem a mesma coisa, as distinções entre homem e mulher não teriam nenhum valor. Porque são diferentes, os homens são valiosos enquanto homens, e as mulheres são valiosas enquanto mulheres. Ser diferente é ter valor. Neste sentido, todas as coisas têm um valor igual, absoluto. Cada coisa tem valor um valor absoluto e, assim, é igual a tudo mais. Nós normalmente estamos comprometidos com padrões de avaliação: valor de troca, valor material, valor espiritual e valor moral. Pelo fato de ter um padrão, você pode dizer “ele é bom” ou “ele não é tão bom”. O padrão moral define o valor das pessoas. Mas os padrões morais estão mudando sempre e uma pessoa virtuosa não é sempre virtuosa. Se você compará-la com alguém como o Buda, ela não é tão boa. Chega-se à idéia de bom ou mau por algum padrão de avaliação. Mas como cada coisa é diferente, cada coisa tem seu próprio valor. Este valor é absoluto. A montanha não vale mais porque é alta e o rio não vale menos porque é baixo. Por outro lado, porque uma montanha é alta, ela é uma montanha e tem um valor absoluto. Porque a água corre baixo no vale, a água é água e tem um valor absoluto. A qualidade da montanha e a qualidade do rio são completamente diferentes. Porque são diferentes, têm igual valor. E igual valor significa valor absoluto.
De acordo com o Budismo, igualdade é diferenciação e diferenciação é igualdade. A compreensão costumeira é que diferenciação é o oposto da igualdade, mas nosso entendimento é que elas são a mesma coisa. Um e muitos são o mesmo. Se você só enxergar a partir da perspectiva que diz que um é diferente de muitos, sua compreensão é materialista e superficial demais.

06 setembro 2006

Sandokai - 5º Comentário de Suzuki

O espírito do grande sábio da Índia transmitiu-se
Intimamente, diretamente, secretamente,
Do Leste para o Oeste.
Entre seres humanos, há sábios e tolos,
Mas no caminho não há patriarcas do sul ou do norte.

Quando Daiman Konin, o Quinto Patriarca, anunciou que ia proceder à transmissão do dharma, todos os monges pensaram que, entre eles, Jinshu seria o escolhido. Jinshu era um grande estudioso e havia ido para o norte da China, onde se tornara um grande professor. Mas, na realidade, foi Eno, que pilava arroz num canto do mosteiro, quem recebeu a transmissão e tornou-se o Sexto Patriarca. A escola de Jinshu foi chamada de Hoku Zen, ou Escola do Norte, e a de Eno espalhou-se pelo sul e foi chamada de Nan Zen, Escola do Sul. Mais tarde, após a morte de Jinshu, a Escola do Norte tornou-se mais fraca e a do Sul se fortaleceu. Entretanto, ao tempo de Sekito, a Escola do Norte ainda era poderosa.
O Sexto Patriarca, Eno, teve muitos discípulos. Contam-se cinqüenta, mas deve ter havido mais. O mais jovem, Kataku Jinne (Ch. Heze Shenhui), que era uma pessoa muito ativa e alerta, denunciou fortemente o Zen de Jinshu. Nós não podemos aceitar completamente seu ensinamento. Quem estudou o Sutra da Plataforma do Sexto Patriarca sabe que ali se denuncia duramente o ensinamento de Jinshu. O sutra pode ter sido compilado por alguém sob a influência de Kataku Jinne. De qualquer modo, havia um conflito entre o Zen do Sul de Eno e o Zen do Norte de Jinshu. Sekito desejava esclarecer esta disputa a partir de seu próprio ponto de vista. Por isso escreveu o Sandokai.
O poema começa, “O espírito do grande sábio da Índia transmitiu-se intimamente, diretamente, secretamente, do Leste para o Oeste”. A compreensão de Sekito é que o ensinamento verdadeiro do grande sábio Buda Shakyamuni inclui ambas as escolas do Norte e do Sul, sem qualquer contradição. Ainda que o ensinamento do grande sábio possa não ser compreendido completamente, ele ainda assim alcança todos os lugares. Se você tiver olhos para ver ou mente para compreender o ensinamento, verá que não é necessário se envolver nesse tipo de disputa. Porque alguns descendentes de Eno e Jinshu não compreenderam completamente o ensinamento de Buda, entraram em disputa. Do ponto de vista de Sekito não há necessidade de confronto.
“Transmitiu-se intimamente”. Mitsuni significa literalmente “exatamente, sem uma brecha entre os dois”. O principal propósito do Sandokai é explicar a realidade de dois lados. Como já disse, san quer dizer “muitos”; do quer dizer “um”. O que é muitos? O que é um? Muitos são um; um é muitos. Mesmo que você diga “muitos”, as muitas coisas não existem separadamente umas das outras. Elas estão estreitamente relacionadas. Se é assim, elas são um. Mas mesmo que elas sejam um, o um parece ser muitos. Assim, “muitos” está certo e “um” está certo. Mesmo quando dizemos “um”, não podemos ignorar os vários seres como estrelas, animais e peixes. Deste ponto de vista dizemos que são independentes. Quando discutimos o significado de cada ser, temos “muitas” coisas para discutir. Quando concluímos que, de fato, a realidade é apenas unicidade, todo a discussão ocorrerá nesta compreensão da unidade do um e muitos.