12 março 2015

A Queda D'água


   A Queda D'água

(Shunryu Suzuki, livro Mente Zen, Mente Principiante, Editora Palas Athena)

Se você vai ao Japão e visita o mosteiro de Eiheiji, logo antes da entrada vê uma pontezinha conhecida por Hanshaku-kyo, que significa "ponte do meio balde". Toda vez que o mestre Dogen apanhava água do rio, usava só metade do balde, devolvendo a outra metade à corrente, sem desperdiçá-la. Por isto chamamos a ponte Hanshaku-kyo, "ponte do meio balde". Em Eiheiji quando lavamos o rosto, enchemos a bacia com setenta por cento de sua capacidade. E depois de nos lavarmos, despejamos a água perto do nosso corpo em vez de lançá-la para longe. Isto expressa respeito pela água. Este tipo de prática não se fundamenta em nenhuma idéia de sermos econômicos. Pode ser difícil entender por que Dogen devolvia ao rio metade da água que dele recolhia. Este tipo de prática está além do nosso entendimento. Quando sentimos a beleza do rio, quando somos um com a água, intuitivamente procedemos como Dogen. É nossa verdadeira natureza que o faz. Mas se sua verdadeira natureza está encoberta por idéias de economia ou eficiência, o caminho seguido por Dogen não faz sentido.

Fui ao Parque Nacional de Yosemite e vi quedas d'água enormes. A mais alta tem quatrocentos e oito metros e a água desce como uma cortina lançada do topo da montanha. Não parece cair com velocidade, como seria de se esperar; parece cair muito devagar por causa da distância. E a água não desce como uma única torrente, mas se divide em muitas e diminutas quedas. À distância, assemelha-se a uma cortina. E ocorreu-me que deve ser uma experiência muito difícil para cada gota d'água cair do topo de uma montanha tão alta. Leva muito tempo, você sabe, um longo tempo, para a água chegar finalmente ao fundo da catarata. Parece-me que a vida humana pode ser assim. Temos muitas experiências difíceis. Mas ao mesmo tempo, pensava eu, originalmente a água não estava dividida e era um único rio. Apenas quando se dividia é que encontrava dificuldade ao cair. É como se a água, enquanto rio, não experimentasse nenhuma sensação. Somente quando dividida em muitas gotas é que poderia começar a ter ou expressar alguma sensação. Quando olhamos um rio não percebemos a atividade viva da água; mas quando apanhamos um pouco de água num balde, experimentamos algum sentimento pela água e sentimos também o valor da pessoa que a usa. Cientes, deste modo, de nós mesmos e da água, não podemos usá-la de forma meramente material. Ela é uma coisa viva.

 Antes de nascermos, não tínhamos sentimentos: éramos um com o universo. A isso chama-se "só-mente" ou "essência da mente" ou "mente grande". Após o nascimento, somos separados dessa unidade, como a água da catarata que se divide pelo efeito do vento e das rochas; só então passamos a ter sentimentos. Você tem dificuldades porque tem sentimentos. Você se apega ao que sente sem saber ao certo como é criado esse tipo de sentimento. Quando você não percebe que é um com o rio ou um com o universo, você tem medo. Dividida em gotas ou não, a água é água. Nossa vida e nossa morte são a mesma coisa. Quando percebemos esse fato, não tememos mais a morte, nem temos verdadeiras dificuldades em nossa vida.

Quando a água volta à sua unidade original com o rio, deixa de ter qualquer sentimento individual; a água retoma sua própria natureza e encontra serenidade. Que contente deve ficar a água ao retornar ao rio original. Se assim for, que sentimento teremos ao morrer? Penso que somos como a água no balde. Então, quando morrermos, teremos serenidade, perfeita serenidade. Talvez nos pareça perfeito demais neste momento, tão apegados estamos aos nossos próprios sentimentos, à nossa existência individual. Nós, neste momento, temos algum medo da morte, mas, depois que retomamos nossa verdadeira natureza original, há o nirvana. Eis a razão pela qual dizemos: "Atingir o nirvana é morrer". "Morrer" não é uma expressão muito adequada. Talvez fosse melhor "prosseguir", ou "continuar", ou "juntar-se". Você poderia achar uma expressão melhor para a morte? Se a achar, terá uma interpretação inteiramente nova para a sua vida. Será como minha experiência quando vi a água descer naquela grande queda. Imagine! Eram quatrocentos e oito metros de altura!

Nós dizemos: "Tudo surge da vacuidade". A totalidade de um rio ou a totalidade de uma mente é vacuidade. Quando chegamos a esta compreensão, encontramos o verdadeir0 sentido da vida. Quando chegamos a esta compreensão, podemos ver a beleza da vida humana. Antes de percebemos este fato, tudo quanto vemos é só ilusão. Algumas vezes superestimamos a beleza; outras vezes a subestimamos ou a ignoramos, porque nossa mente pequena não está em sintonia com a realidade. Falar sobre isto como estamos fazendo é bastante fácil, mas ter a experiência do sentimento real não é tão fácil. Contudo, pela prática do zazen você pode cultivar esse sentimento. Quando for capaz de sentar-se com todo seu corpo e sua mente, com a unidade de sua mente e de seu corpo sob controle da mente universal, você poderá atingir facilmente este tipo de compreensão correta. Sua vida diária será renovada sem se apegar a velhas interpretações errôneas da vida. Quando você compreender isto, descobrirá quão insensata era sua velha interpretação e a inutilidade dos esforços que vinha fazendo. Você encontrará o verdadeiro significado da vida e, apesar das dificuldades na descida vertical desde o topo até o pé da queda d'água, você apreciará sua vida.

 (Esse texto foi traduzido pela Odete Lara, que recentemente voltou à água do rio)

18 fevereiro 2015

Como se chama


Como se chama a flor
que voa de pássaro em pássaro?
(Neruda)

30 janeiro 2015

Paisagens II - Wang Hui (China, 1632–1717)


Quando montanhas estendem nuvens, nuvens estendem montanhas;
Transformadas em chuva contínua, englobam toda a humanidade.
A partir disso sabemos que as bandeiras e flâmulas dos deuses
Não estão nos salões e cômodos de jade.
(Apud Ministro Gao [Kegong, 1248-1310]
(Tinta e cor sobre papel. Metropolitan Museum de Nova Iorque. Texto em português a partir da tradução par o inglês de Shi-yee Liu) 

Paisagens I - Dai Benxiao (China, 1621–1693)


Observando os [funcionários] Gao [Tao] e Kui versus [os eremitas] Chao [Fu] e xu [You]
Servindo e retirando-se são essencialmente o mesmo.
Embora a recompensa dos céus de fato exista nas montanhas,
Cada homem deve seguir sua própria vontade.
"A energia entre o céu e a terra circula através das cavernas e vales. Rindo para mim mesmo [eu penso], 'Porque não uso este velho pincel para penetrá-los e mostrar às pessoas?"
(Tinta sobre papel. Metropolitan Museum de Nova Iorque. Texto em português a partir da tradução para o inglês Maxwell K. Hearn)

09 novembro 2014

Samsara e Nirvana

Não há a menor diferença entre Samsara e Nirvana. Não há a menor diferença entre Nirvana e Samsara.

Qualquer que seja o fim do Nirvana, isso é o fim do Samsara. Não há sequer uma leve distinção entre os dois.
(Nagarjuna, Investigação do NirvanaMulamadhyamakakarika (25-18-19), a partir de tradução para o inglês de Batchelor, disponível em http://www.stephenbatchelor.org/index.php/en/verses-from-the-center)

Krishna e Arjuna antes da batalha de Kurukshetra


O consagrado diretor Peter Brook e o grande dramaturgo Jean-Claude Carriére dão vida ao principal épico religioso da civilização indiana, o Mahabharata ("A Grande História dos Bharatas", em tradução literal), que narra a guerra ocorrida há mais de 5.000 anos entre Pandavas e Kauravas, duas famílias com laços de parentesco muito próximos, pela posse de um reino no norte da Índia. Os momentos que antecedem o confronto final, conhecido como Batalha de Kurukshetra, compõem o trecho mais famoso do poema, conhecido como Bhagavad Gita ("Canção do Divino Mestre"). No decorrer da narrativa são apresentadas lendas e personagens da mitologia hindu, noções filosóficas, como a busca da iluminação, o karma e o dharma, e a proposta ética de um correto modo de vida.

A parte aqui apresentada é o diálogo entre Khrisna e Arjuna logo antes do início da batalha. No poema, esse é o trecho conhecido como Bhagavad Gita.

21 setembro 2014

O corpo e mente de Buda (segundo Hongji)


O Dharmakaya

Quando uma flor cai, é outono.
Onde não há romance é o mais romântico.
O homem de madeira dá o passo para trás e o cordão de ouro é
cortado.
Claramente não há nenhuma oportunidade para arrastar o boi de ferro. 



O Nirmanakaya

Lançados os dados sobre a mesa eu confio que a minha sorte vai prevalecer.
O vento sopra e a relva se curva, lua crescente no céu claro.
Bloqueando a rua, obstruindo a pista, este ridículo saco de pele.
Quando poderia Maitreya nunca mais aparecer?

23 agosto 2014

Macieira



Não vês que a macieira floresce
para morrer na maçã?
(Neruda)

27 julho 2014

Nascimento e morte



Pergunta 10: Disse um mestre:
“Não lastimeis nascimento e morte. Há um modo imediato de ser livre do nascimento e da morte, a saber, conhecer o princípio de que a natureza da mente é permanente.  Isto significa que, porque este corpo já está no nascimento, é levado para a morte, mas a mente-natureza não perecerá. Deveis reconhecer que tendes em vosso corpo a mente-natureza, que não é afetada por nascimento e morte. Esta é natureza inerente. O corpo é uma forma temporária;  morre aqui e nasce ali, e não é fixo. A mente é permanente: não muda através do passado, futuro ou presente.  Entender isto é ser livre de nascimento e morte. Aqueles que reconhecem este princípio acabam com nascimento e morte para sempre. Assim, quando vosso corpo termina, entrais no oceano da Natureza. Quando fluís para dentro do oceano da natureza, atingis uma maravilhosa virtude, assim como todos os tathagatas. Mesmo que vos assegureis disto agora, porque vosso corpo é o resultado das ações deludidas das vidas passadas, não sois como todos àqueles que não reconhecem este princípio estarão no domínio do nascimento e da morte para sempre. Por conseguinte, deveis vos apressar a entender que a mente-natureza é permanente. Se simplesmente passardes toda a vossa vida sentados ociosamente, o que podereis esperar”.
Pergunta: Uma afirmação como esta está de acordo com a senda de todos os Budas e ancestres?

Resposta: A visão que mencionasses não é, de modo algum, o ensinamento de Buda, mas sim a visão do herético Senika. Ele disse: Há uma alma no corpo e esta alma, ao encontrar condições, reconhece o bem e o mal, o certo e o errado. Discernir o padecer e o coçar, conhecer a dor e o prazer também é capacidade desta alma. No entanto, quando o corpo é destruído, a alma sai e nasce em outro mundo. Assim, parece estar morta aqui, mas como há nascimento em outro lugar é permanente, sem morte.

Seguir este ponto de vista e considerá-lo ensinamento de Buda é mais tolo do que agarrar uma telha ou uma pedra e considerá-la ouro. Uma ignorância vergonhosa como essa não pode ser comparada a nada. O Professor Nacional Huizhong, da Grande Tang, criticou profundamente isto. Aceitar o ponto de vista errado de que a mente é permanente e que a forma perece, considerando isto igual ao inconcebível ensinamento de todos os Budas, ou criar as causas de nascimento e morte, desejando-se separado de nascimento e morte - não é tolice? É profundamente lamentável! Entendei isso apenas como o ponto de vista errado dos hereges e não deis ouvidos a isso.

Não posso deixar de ser compreensivo; deixai-me resgatar-vos de vossa visão errada. Deveis saber que no darma-de-buda sempre foi dito que corpo e mente são não-separados, natureza e características não são dois. Isto era conhecido tanto na Índia quanto na China.

Desse modo, não há nenhum lugar para o equívoco. Na realidade, o ensinamento sobre a permanência diz que todas as coisas são permanentes, sem dividir corpo e mente. O ensinamento sobre a cessação diz que todas as coisas cessam, sem separar natureza e características. Como podeis dizer que o corpo perece, mas a mente é eterna? Não é contra o autêntico princípio? Não apenas isso, deveis entender que nascimento-e-morte é, em si mesmo, o nirvana. O nirvana não se explica fora de nascimento-e-morte. Mesmo que entendais que a mente é eterna, separada do corpo, e suponhais equivocadamente que a sabedoria de Buda está separada de nascimento-e-morte, esta mente do entendimento ou do reconhecimento ainda nasce e perece e não é permanente. Não será efêmera?

Deveis saber que o ensinamento de que corpo e mente são um está sempre sendo explicado no darma-de-buda. Então, como pode a mente sozinha deixar o corpo e não cessar, quando cessa o corpo? Se corpo e mente às vezes são não-separados e não não-separados algumas outras vezes, o ensinamento de Buda seria falso. Ademais, pensar que nascimento-e-morte deve ser rejeitado é o equívoco de ignorar o darma-de-buda. Deveis vos abster disso.

Deveis saber que o chamado "portão do darma de toda a realidade da mente-natureza", no darma-de-buda, inclui o mundo fenomenal inteiro, sem separar a natureza das características ou o nascimento da morte. Nada, nem mesmo o bodi ou o nirvana, estão fora da mente-natureza. Todas as coisas e todos os fenômenos são somente uma mente – nada está excluído ou não-relacionado. Ensina-se que todos os portões do darma são igualmente uma mente, e não há nenhuma diferenciação. E assim que os budistas entendem a mente-natureza. Como podeis diferenciar isso em corpo e mente e separar nascimento-e-morte de nirvana? Vós já sois o filho de Buda. Não deis ouvido às línguas dos homens loucos, que citam visões heréticas.
Dogen. Sobre o empenho do caminho (Bendo-wa). In: A lua numa gota de orvalho. São Paulo: Siciliano, p. 166-168, 1993.

O grito do corvo de Ikkyu


ninguém compreende o meu não não
Zen Zen
nem mesmo aquele sombrio e estridente
grito do corvo sacou

13 julho 2014

O raio e a oferta - dois poemas de Ikkyu


Como o orvalho efêmero,
a aparição súbita,
ou o lampejo fugaz do raio
- mal aparece, já sumiu -
assim somos todos nós.


Queria oferecer
Algo pra você.
Mas no zen
Não temos.