30 novembro 2006

Sandokai - 9º Comentário de Deshimaru

Um e todos, o sujeito e o objeto estão relacionados
E, ao mesmo tempo, são independentes.
Estão relacionados, mas funcionam diferentemente,
Mantendo cada um o seu próprio lugar.

As portas são as seis entradas de nosso corpo, os seis sentidos. Na filosofia budista, a consciência é considerada como um sexto sentido. Um cão encurrala. Nossos ouvidos são a porta e o grito do cão é o objeto. Do mesmo modo, em zazen, o som do sino do templo... Vemos uma flor: a imagem da flor e nossos olhos não estão separados nem unidos. O homem e o cosmo, as portas da percepção e os objetos percebidos, se interpenetram totalmente. São ao mesmo tempo, um e múltiplos.

Os objetos, as cores, os sons, as vibrações existem independentemente de nós, em todo o universo, por todo o mundo. Apesar disto, a cor da flor e o som do sino só existem através de meus olhos e de meus ouvidos.

O homem é o homem. O cosmo é o cosmo. Cada um em suas posições. Mas, também, pela atividade das seis portas, o homem torna-se o cosmo e o cosmo torna-se homem: os dois se interpenetram. A raiz e as folhas são uma e a outra na sua posição existencial, com suas funções próprias. A raiz toma água da terra e as folhas, oxigênio do ar. Ao mesmo tempo, as raízes e os galhos se apóiam, se ajudam reciprocamente, combinam-se e fundem-se, mantendo relações de interdependência profundas e íntimas.

20 novembro 2006

Sandokai - 10º Comentário de Suzuki

Apegar-se às coisas é causa de ilusão.
Seguir e encontrar o absoluto
Não é a verdadeira iluminação.


“Apegar-se às coisas é causa de ilusão”. “Apegar-se às coisas” significa agarrar-se às múltiplas coisas que vocês vêem. Ao compreenderem que cada ser é diferente, vocês vêem cada um como algo especial e, habitualmente, vocês se apegam a algo. Mesmo que quando vocês reconhecem a verdade de que tudo é um, isto nem é sempre iluminação. Pode ser iluminação, mas nem sempre. É apenas compreensão intelectual. Uma pessoa iluminada não ignora as coisas e não se apega às coisas, nem mesmo à verdade. Não há nenhuma verdade que seja diferente do que cada ser é. Cada ser é em si mesmo a verdade. Vocês podem pensar que existe uma verdade controlando cada ser. Vocês podem pensar que esta verdade seja como a verdade da gravitação. Se a maçã é cada ser, então atrás da maçã existe alguma força se exercendo sobre a maçã, como a gravidade. Compreender as coisas deste modo não é iluminação. Apegar-se aos seres, idéias, até mesmo aos ensinamentos do Buda, dizendo, “o ensinamento do Buda é algo como isto”, é apegar-se ao ji. Esta é espinha dorsal do Sandokai.

“Seguir e encontrar o absoluto não é a verdadeira iluminação”. Reconhecer a verdade tampouco é iluminação. É melhor não dizer nada. Se eu traduzir ri para o português, já é ji. Na realidade, a iluminação não é algo que vocês possam experimentar. Está além de nossa experiência. Se alguém disser, “eu alcancei a iluminação”, está errado. Isto é ilusão. Ao mesmo tempo se vocês acharem que a iluminação está além da nossa experiência, que é algo que vocês não podem experimentar, ainda assim a iluminação está ali. Então vocês não podem dizer que não há iluminação nem que há iluminação. Iluminação não é algo que vocês possam dizer que exista ou que não exista. E, ao mesmo tempo, algo que vocês podem experimentar é também iluminação.

Em um dos meus últimos comentários, referi-me à grande disputa à época de Sekito, sobre a iluminação súbita ou gradual. O Sutra do Sexto Patriarca denuncia o caminho de Jinshu como sendo o caminho da iluminação gradual, ao mesmo tempo em que declara que o caminho do Sexto Patriarca é o da iluminação súbita. De acordo com o Sutra do Sexto Patriarca, parece que apenas sentar não é uma prática verdadeira.

Mas talvez esta não tenha sido uma idéia própria do Sexto Patriarca. Na realidade, não há tanta diferença entre o caminho de Jinshu e o caminho do Sexto Patriarca. O Sutra do Sexto Patriarca foi compilado logo após a morte do Sexto Patriarca e, talvez cinqüenta anos mais tarde, a crítica da escola da iluminação gradual de Jinshu tenha sido acrescentada por Kataku Jinne – um discípulo do Sexto Patriarca – ou por um discípulo de Kataku Jinne, após seu falecimento. Kataku Jinne foi um grande mestre Zen. Ele era muito ativo e crítico da prática de Jinshu, mas talvez não fosse tão áspero quanto as palavras do Sutra transmitem.

Kataku Jinne, ou seu discípulo, pode também ter adicionado este poema: “Não há árvore bodhi, não há espelho. Não há suporte para o espelho; não há nada. Como é possível limpar o espelho?”* Porque acham que este poema não é tão bom, muitas pessoas o criticam e pensam que ele não pode ser atribuído ao Sexto Patriarca. Naqueles dias era uma honra possuir uma cópia do Sutra do Sexto Patriarca. Existem muitas versões e as mais antigas não incluem este poema ou qualquer crítica à escola de Jinshu.

Assim, um dos objetivos do Sandokai é esclarecer essa compreensão errônea sobre Jinshu, que o fez parecer como apegado a rituais ou estudos acadêmicos. O estudo acadêmico pertence a ji. Ri é algo que você só pode experimentar através da prática. Vocês podem pensar que o trabalho acadêmico é ri, mas para nós não é. Para realizar ou obter uma compreensão completa de ri, para aceitar ri, é nossa prática. Mas ainda que vocês pratiquem o zazen e pensem que é ri, ou o alcance ou realização de ri, nem sempre é assim de acordo com Sekito. Se vocês compreendem isto, vocês já compreendem todo o Sandokai.
*O Quinto Patriarca Daiman Konin desejava encontrar seu sucessor. Ele pediu aos monges que escrevessem um poema que expressasse sua compreensão. Jinshu, o chefe dos monges, escreveu o seguinte poema, na parede, no meio da noite:
Nosso corpo é a árvore bodhi,
nossa mente, um espelho brilhante.
Limpe-os cuidadosamente a toda hora
e não deixe nenhuma poeira pousar.
Quando Eno viu isto no dia seguinte, disse ao monge que estava ao seu lado, “Também tenho um poema, mas como sou iletrado, você poderia escrevê-lo para mim?”
Não há árvore bodhi,
nem espelho que brilhe.
Uma vez que tudo é vazio,
onde pode a poeira pousar?
Quando Konin viu isto, soube que seu autor possuía a compreensão que buscava. Reconheceu Eno como seu herdeiro no Dharma e este se tornou o Sexto Patriarca.


06 novembro 2006

Sandokai - 8º Comentário de Deshimaru

Apegar-se às coisas é causa de ilusão.
Seguir e encontrar o absoluto
Não é a verdadeira iluminação.


Estamos aqui mais uma vez diante da mensagem fundamental do budismo Mahayana tal como expressa no antigo sutra que é cantado após o zazen, o Hanna Shingyo, ou Sutra da Sabedoria Suprema (Mahaprajna Paramita, em sânscrito):
shiki soku ze ku
ku soku ze shiki

Os fenômenos são a essência (o vazio) e a essência (o vazio) nada mais é que os fenômenos. E, uma vez que shiki torna-se ku e ku, shiki, é impossível privilegiar um dos dois termos. Ligar-se ao mundo dos fenômenos, ao universo material, é causa de ilusão, e não encontrar senão a essência, o vazio, não é verdadeiramente o despertar.
O budismo está além da dualidade da essência e da existência, como de toda dualidade. Para Dogen, o espírito e a matéria são um. Zazen engloba todas as contradições. Buda resolveu experimentalmente a questão com a qual se debate a filosofia ocidental desde Platão. Porque estamos nesta terra? Que somos nós, de onde viemos, para onde vamos? Ou melhor, o que vem primeiro, a essência ou a existência, a matéria ou o espírito, etc? Hoje, como há dois mil anos na Índia, o problema permanece o mesmo.
Nem existencialismo, nem essencialismo, nem materialismo, nem idealismo, a formulação do Caminho do meio por Nagarjuna é sempre pertinente. Devemos encontrar a raiz do ego, o princípio último do universo. E só poderemos resolver a crise de nossa civilização nos harmonizando com a ordem e energia do cosmo.