05 agosto 2007

Sandokai - 19º Comentário de Suzuki (1ª parte)

Cada coisa tem o seu próprio valor
E está relacionada com tudo o mais na função e na posição.
A vida comum encaixa-se no absoluto
Como uma caixa à sua tampa.
O absoluto funciona junto com o relativo,

Como duas flechas se encontrando no meio do ar.


Agora eu gostaria de falar como observamos as coisas e como compreendemos o valor das coisas. “Cada coisa tem o seu próprio valor e está relacionada com tudo o mais na função e na posição” – Bammotsu onozukara ko ari, masani yo to sho to wo iu beshi. Cada coisa (bammotsu) inclui os seres humanos, montanhas e rios, estrelas e planetas. Tudo tem sua função, virtude ou valor. Quando dizemos “valor”, habitualmente nos referimos a valor de troca. Mas aqui valor tem um significado mais amplo, para o qual empregamos a palavra ko. Ko não significa “função” ou “utilidade” no sentido habitual, mas, ao contrário, aplica-se mais a virtude ou mérito: alguém que vive uma vida meritória ou faz algo para a sociedade ou para a comunidade. Essa função terá virtude para nós. Mas quando dizemos “função”, você pode ainda se perguntar, “Função de quê?”

Aqui terei que usar alguns termos técnicos. Por exemplo, se você vê algo – [De repente o equipamento de som é ligado e Roshi ouve sua própria voz retornando dos alto-falantes]. Oh! [Risos]. Vocês ouvem minha voz. Vocês pensam que estão me ouvindo. O que vocês estão ouvindo pode ser minha voz, mas na realidade vocês estão ouvindo a função de alguma entidade universal chamada eletricidade que cobre o mundo todo - o universo todo. Esta é uma compreensão. Uma outra seria que vocês estão ouvindo a minha natureza bem como a natureza da eletricidade. Desta forma, quando vocês vêem ou ouvem algo, todo o universo está incluído. Quando compreendemos as coisas desta maneira, chamamos a compreensão de tai.

Tai quer dizer “corpo”. Mas é um corpo grande, ontológico que tudo inclui. E chamamos a natureza desse corpo de shō – não o sho nesses versos aqui, mas o shō que significa “a natureza básica de tudo”. Quando apreendemos isto que está além das palavras, chamamos esta compreensão de ri, ou verdade. Ri é algo além de nossa idéia de bom e mau, longo e curto, certo e errado.

No verso seguinte temos yo, que significa “utilidade” ou “uso”. Ko e yo podem parecer a mesma coisa, mas aqui – quando as empregamos como termos técnicos budistas – ko refere-se à função das coisas, ou ji, enquanto yo refere-se à função da verdade absoluta, ou ri. Nesses dois versos, Sekito está falando da unicidade de ko e yo. Ko e yo aplicam-se a cada ocasião e a todas as coisas. Assim, quando vocês encontram coisas, vocês deveriam saber que exatamente ali o ensinamento verdadeiro se revela. Vocês devem conhecer aquele lugar.

Às vezes empregamos ko e yo juntos. Quando dizemos koyo, compreendemos não apenas cada coisa tal como a vemos, mas também o que está por trás de cada coisa, que é ri. Devemos saber como usar as coisas. Saber como usar as coisas e saber o ensinamento, ou o modo como as coisas estão funcionando. Compreender as coisas significa compreender o que está por trás, o fundo. E compreender o valor das coisas é compreender como usá-las da maneira correta de acordo com o lugar e a natureza de cada coisa. Isto é ver as coisas-como-é. Habitualmente, mesmo quando vocês dizem, “Eu vejo as coisas-como-é”, vocês não vêem. Vocês vêem um lado da realidade e não o outro. Você não vê o fundo, que é ri. Vocês vêem apenas em termos de ji, o lado fenomênico de cada evento, e pensam que cada coisa existe apenas daquela maneira, mas não é assim. Todas as coisas estão mudando e estão relacionadas, uma à outra, e cada coisa tem seu fundo. Há uma razão pela qual todas as coisas estão aqui. Ver coisas-como-é quer dizer que ji e ri são um, que distinção e igualdade são um, e que a aplicação da verdade e o valor das coisas são um.
Por exemplo, pensamos que o universo existe apenas para os seres humanos. Hoje em dia nossas idéias tornaram-se mais amplas e nosso modo de compreender as coisas tornou-se mais livre, mas mesmo assim nossa compreensão é principalmente antropocêntrica, de modo que não apreciamos o verdadeiro valor verdadeiro das coisas. Vocês têm muitas perguntas para fazer-me, mas se vocês compreenderem este ponto claramente, não há muito que perguntar. A maior parte das questões e problemas é criada pelas idéias antropocêntricas, auto-referentes. “O que é morte e nascimento?” Esta já é uma idéia muito auto-centrada. Naturalmente, nascimento e morte é nossa virtude ou mérito. Morrer é nossa virtude, vir a esse mundo é também nossa virtude. Vemos como as coisas vão indo, como tudo está aparecendo e desaparecendo, tornando-se cada vez mais velho, ou ficando cada vez maior. Tudo existe deste modo. Então porque deveríamos tratar a nós mesmos de um modo especial? Quando dizemos “nascimento e morte”, quase sempre estamos nos referindo a nascimento e morte de seres humanos. Quando vocês compreenderem nascimento e morte como nascimento e morte de todas as coisas – plantas, animais e árvores – isto já não será mais um problema. Se for um problema, é um problema para todas as coisas, incluindo a nós mesmos. Um problema de todas as coisas não é mais um problema. Quase todos esses questionamentos vêm de uma compreensão estreita das coisas. É necessária uma compreensão mais ampla, mais clara. Vocês podem pensar que falar sobre esse tipo de coisa não os ajuda em nada. Um ser humano auto-referente pode ser difícil de ser ajudado!

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