26 dezembro 2012

Iluminação

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A iluminação é como a lua refletida na água. A lua não se molha, nem a água se quebra. Embora sua luz seja grande e clara, a lua refletida na poça não ultrapassa três centímetros. A lua inteira e todo o universo se refletem numa gota de orvalho na relva.
(Dogen)

12 dezembro 2012

O silêncio de Subhuti ultrapassa Vimalakirti


Quando ao governo faltam pessoas sábias, procuram talentos nas montanhas e nos desertos. Como exemplos excelentes, foi dessa forma que encontraram Bairi Xi e confiaram-lhe o governo, e encontraram Fushi Yan para servir o país. Compreendam claramente que entre montanhas e desertos certamente há pessoas talentosas e sábias, e que essas pessoas lá são abundantes. Portanto, vocês monges de água e nuvem que se alojam nas montanhas e desertos e estudam o caminho de Buda com o corpo e a mente não devem ser inferiores a leigos ou ministros do governo. Agora vocês não têm ainda a determinação de ministros, como podem alcançar a intenção cuidadosa de sábios? Isso é porque vocês são preguiçosos e não estudam. Vocês deveriam ter vergonha e ficarem tristes. Vocês precisam saber que o tempo voa como uma flecha e que a vida humana é difícil de preservar. Estudar o caminho é como se extinguir as chamas ao redor de suas cabeças fosse as faces dos budas ancestrais passados e os ossos e a medula do ancestral fundador.

Lembro-me que Subhuti estava segurando a tigela mendigando em volta da casa de Vimalakirti. Vimalakirti encheu a tigela com arroz perfumado e exclamou para Subhuti, "Se você pode caluniar o Buda, esmagar o Dharma, e não entrar na Sangha, você pode comer isso." [De acordo com o sutra] Subhuti não entendeu isso, largou a tigela e saiu.

Por mais de dois mil anos, ninguém cozinhou essa situação particular. Todo mundo diz simplesmente que Subhuti não entendeu esse significado, e ninguém disse que Subhuti entendeu. Daibutsu [Dogen] pergunta aos valorosos ancestrais e antigos sábios, vocês viram, através desse caso de Subhuti largando a tigela e saindo ou não? Subhuti já largou a tigela e saiu. A voz de Subhuti é como o trovão que chega até o presente e ainda não descansou. Assim, sua voz lança as vozes do veículo Sravaka, do veículo Pratyekabuddha e do veículo do bodhisattva. Portanto, parece que Vimalakirti foi incapaz de ouvir.

Agora eu pergunto a Vimalakirti: Você ouve a voz de Subhuti que calunia Buda, esmaga o Dharma, e não entra na Sangha, ou não? Se você não ouve a voz dele expondo, eu vou fazer com que você fique segurando uma tigela de arroz, de pé no chão, por um ou dois kalpas.

Além disso, eu, Daibutsu, digo a Vimalakirti, em nome Subhuti: encha a tigela com arroz perfumado, mesmo enquanto você está caluniando o Buda, esmagando o Dharma e não entrando na Sangha. Então eu vou comê-lo. Esperando Vimalakirti responder, eu, [Subhuti], pegarei rapidamente a tigela de arroz e seguirei adiante.

01 novembro 2012

Pérola brilhante

Dominando o universo inteiro nas dez direções, damos o primeiro passo; dominando o universo inteiro nas dez direções, nos engajamos na prática; dominando o universo inteiro nas dez direções, esclarecemos a Mente; dominando o universo inteiro nas dez direções, transformamos a atividade de nossos corpos, dominando o universo inteiro nas dez direções, revertemos a nossa maneira de pensar.

Eis uma história. Um monge perguntou Xuansha, “O sumo sacerdote [Xuansha] disse, ‘O universo inteiro nas dez direções é uma pérola brilhante’. Como pode este aluno entender isto?”

Xuansha disse: “O universo inteiro nas dez direções é uma pérola brilhante. De que serve entender isto?”

No dia seguinte Xuansha ainda perguntou o monge, “O universo inteiro nas dez direções é uma pérola brilhante. Como você entende isto?”

O monge respondeu: “O universo inteiro nas dez direções é uma pérola brilhante. De que serve entender isto?”

Xuansha disse: “Agora eu sei que você está vivendo na caverna do demônio da montanha negra”.

Após relatar a história Dogen disse. O universo inteiro em todas as direções é uma pérola brilhante. O sol, a lua e as estrelas se assemelham a um coelho e corvos. Quando você quer entender o conjunto completo, mas não entende, ficar na caverna do demônio da montanha preta é uma boa e vigorosa prática.
(Dogen, Eihei Koroku, Fala do Salão do Dharma #107)

Vocês podem ler mais sobre o koan narrado por Dogen no sermão (texto em inglês) de John Daido Loori, Roshi, em Hsuan-sha's One Bright Pearl.

18 agosto 2012

Maitreya já desceu

Eis uma história. Dongshan [Liangjie] disse a Yunju: Há muito tempo, Nanquan perguntou a um monge que estava dando uma palestra sobre o Sutra da Descida de Maitreya, “Quando Maitreya descerá?”
O monge respondeu: "Ele está atualmente no palácio celestial, e vai nascer no futuro".
Nanquan disse: “Não há Maitreya no céu, nem há Maitreya aqui embaixo na terra."
Em seguida, Yunju perguntou: "Se simplesmente não há Maitreya no céu e não há Maitreya aqui no chão, eu quero saber quem concedeu seu nome [Maitreya]".
Dongshan imediatamente sacudiu seu assento de meditação e disse: "Mestre [Yunju Dao] ying".
Mestre Dogen disse: Não há Maitreya no céu, e não há Maitreya aqui embaixo na terra. Maitreya não é Maitreya, [e desta forma] Maitreya é Maitreya. Ainda que isto seja assim, não querem todos ver Maitreya?
Dogen levantou o hossu e disse: Vocês se encontraram com Maitreya. Já o tendo encontrado, digam-me todos rapidamente se Maitreya existe ou não existe.
Dogen abaixou seu hossu, desceu do seu assento, e circulou pelo zendô.
(Dogen, Eihei Koroku, Fala do Salão do Dharma #61)

13 agosto 2012

O canto do rouxinol e o homem oco



Qual é a mente dos budas ancestrais? Eu diria a alguém: A canção do rouxinol é a mesma por toda a parte.
Qual é a pessoa original? Eu diria a alguém: Um homem emaciado com a pele murcha.
(Dogen, Eihei Koroku, Fala do Salão do Dharma #57)

02 agosto 2012

Atravessei mares e rios


Atravessei mares e rios, transpus montanhas e vadeei regatos,
Para encontrar mestres, buscar o Caminho e penetrar nos segredos do Zen.
Desde que pude discernir o caminho de Sôkei*, 
Soube que nascimento-e-morte não é a coisa à qual eu estava ligado.
Andar é Zen, sentar-se é Zen;
Quer falando, quer ficando em silêncio, quer se movendo,
quer permanecendo quieto, a Essência está sempre em repouso;
Mesmo quando ameaçada com espadas e lanças, ela jamais abandona seu sereno caminho.
Mesmo venenos não conseguem perturbar sua calma.

                                                               
(Yoka Daishi (613-713) Shodoka, Poema da Iluminação, Trad. Ricardo M. Gonçalves)

*Sôkei é a localidade onde ficava situado o mosteiro do Sexto Patriarca Hui-Neng.

01 agosto 2012

Estudo de sons e cores



Recomenda-se ganhar a margem inteira, mas definitivamente evitar a criação de uma oposição frontal. Pelo lado claro [compreendendo as diferenças] vocês merecem trinta golpes; pelo lado escuro [fundindo em unidade] vocês merecem trinta golpes. Vocês já alcançaram isso. A todas as pessoas não falta, nem mesmo um pouco. Porque vocês não percebem isso? Iluminação não inveja iluminação, mas [vocês não conseguem perceber] simplesmente porque vocês estão presos por sons e cores. Quando os sons e cores prendem a iluminação, não estão sons e cores presos pela iluminação? Embora isto seja assim, liberar os seus corpos em sons e cores, abrindo suas mãos no meio de sons e cores, permanecendo lá empregando seus próprios esforços, certamente vocês podem realizar o pilar firme do Zen e vocês podem perceber o Zen Nirgrantha, ainda que, nem mesmo em sonhos, vocês vejam um Zen ancestral ou o Zen Tathagata*. Como isto é muito doloroso!

Quando vocês erroneamente vestem o manto de sons e cores e buscam vantagens através de formas externas, vocês terão em suas casas pinturas da deusa da boa fortuna, mas vocês também estarão nutrindo a deusa da pobreza.

Quando sem expectativa, de repente vocês quebram o balde laqueado ao estilo dos antepassados, levantam a cabeça e golpeiam seus peitos [numa expressão não mediada], de repente vocês atingem a realização do caminho. Quando uma pessoa realiza o caminho, o eu e o outro, juntos, realizamos o caminho. Em uma manhã de realizar o caminho, o corpo passado e o corpo futuro, juntos, realizam o caminho. Por exemplo, é como [atravessando um rio] em um barco ou uma ponte, o eu e os outros andarem juntos, alcançando e penetrando o caminho. Voltado para o leste ou voltado para o oeste, ao mesmo tempo não há paralisação e não há obstrução de um e de outro. Alguém voltado para o leste e alguém voltado para o oeste podem usar esse único barco. O barco é o mesmo, mas as pessoas são diferentes. Indo para o leste ou para oeste, cada pessoa chega a seu destino. Esta é a característica da iluminação. Quando realizamos o caminho, não realizamos com algo mais, realizamos apenas com sons e cores. Quando estamos iludidos, não estamos iludidos com algo mais, estamos iludidos apenas com sons e cores. Uma pessoa iludida e uma pessoa iluminada utilizam ao mesmo tempo um barco, e cada uma delas não é obstruída.

Nos tempos antigos, certa vez um monge perguntou a Fayan, "Como eu posso transcender as duas palavras, som e cor?"

Fayan disse, "Grande assembleia, se vocês entenderem o ponto desta questão deste monge, não é difícil transcender o som e a cor".

Como podemos investigar essa circunstância [da história]? Com seus ouvidos, ouçam o alaúde sem cordas, e com os seus olhos, vejam a árvore sem sombra. Grandes praticantes têm conhecido tal princípio. No entanto, há um ponto que vocês precisam entender em detalhes. Com seus ouvidos, [também] ouçam o alaúde que tem cordas, com os seus olhos, vejam a árvore que tem sombra. Vocês já são assim. Agora eu pergunto à grande assembleia, que coisas vocês chamam de sons e cores? Onde estão os sons e cores agora?

 (Dogen Eihei Koroku, Fala do Salão do Dharma #52)

*Nirgrantha Jnatiputra, também conhecido como Mahavira. é o nome do fundador do jainismo,  contemporâneo com Buda Shakyamuni. A tradição Jain enfatiza o ascetismo e renúncia ao mundo, por isso, aqui, "Zen Nirgrantha” pode ser uma expressão de Dogen para a prática que tenta rejeitar o reino de som e cores. " Pilar firme do Zen " é uma expressão original que aqui pode implicar apenas na compreensão ou meditação em silêncio, sem expressão aberta e partilha do ensinamento no mundo fora do salão do Dharma. Por isso, essa frase pode ser interpretada como dizendo que a rejeição do reino de sons e cores é outra forma de apego ao reino de sons e cores. "Zen ancestral" tradicionalmente refere-se à pratica como ela funciona na atividade diária normal. "Zen Tathagata" refere-se à pratica baseada nos ensinamentos dos sutras. (Comentário de Taigen Dan Leighton)

27 julho 2012

Paciência

The Buddha Dipankara 1600-1700 Nepal Gilt Copper Repousse (1)


Nosso Mestre outrora serviu ao Buda Dipankara,
E depois, por muitas eras, disciplinou-se sob a forma de um asceta chamado Paciência.
Eu também muitas vezes nasci e morri;
Nascimentos e mortes - como seu suceder é infinito!
(Yoka Daishi (613-713) Shodoka, Poema da Iluminação, Trad. Ricardo M. Gonçalves)

24 julho 2012

Um lugar para viver

Os budas ancestrais compreenderam o Buddha Dharma e alcançaram poderes espirituais. Realizar o estado de buda e tornar-se um ancestral não pode ser conseguido facilmente. Aqueles que apenas alcançam poder espiritual são chamados anciãos. Aqueles que entendem Buda Dharma são chamados os grandes. Compreender a grandeza e alcançar o respeito como um ancião simplesmente dependem de penetrar no princípio e de se engajar totalmente no caminho.

Zhaozhou disse: "Irmãos, apenas sentem e penetrem no princípio. Se vocês fizerem isso durante vinte ou trinta anos e não compreenderem o caminho, peguem a cabeça deste velho monge e transformem-na numa concha para recolher excremento e urina".

Um Buda ancestral falou assim, e as pessoas de hoje fazem tal prática. Como poderíamos ser enganados? Simplesmente porque estar ligada a sons e cores sem perceber seu pensamento discriminativo, a pessoa ainda não é capaz de se libertar. Que pena. Essa pessoa está desejando aparecer e desaparecer em vão nas poeiras de sons e cores. Agora podemos encontrar a oportunidade presente [a prática]. Abandonem a queima de incenso, as prostrações, o nenbutsu, a prática do arrependimento e a leitura de sutras: apenas sentem-se.

Lembro-me da visita Zhaozhou a Yunju Daoying. Yunju disse: "Grande Ancião, por que você não procura um lugar para residir?"

Zhaozhou disse: "Qual é lugar onde essa pessoa poderia viver?"

Yunju disse: "Em frente da montanha existe a fundação de um antigo templo".

Zhaozhou disse, "Grande sacerdote, seria bom para você mesmo ir viver lá".

De tal maneira, uma pessoa que entende o Buda Dharma manifesta poderes espirituais. Esta atividade não é a mesma que a daqueles dentro dos dez santos e três sábios [estágios](*). Eu, Kosho, em nome de Yunju, mais uma vez manifestarei o poder espiritual. Antes, já havia sido dito: "Qual é o lugar onde essa pessoa poderia viver." Depois, foi dito: "Grande sacerdote, viva lá você mesmo", Já tendo assim alcançado, vocês deveriam ser assim. Isto é como dizer, "Vivam, vivam".
 (Dogen Eihei Koroku, Fala do Salão do Dharma #33)

(*)Os "dez santos" refere-se aos dez estágios, ou bhumis do desenvolvimento do bodhisattva, elaborados no Sutra Dašabhumika. Os "três sábios" refere-se aos três agrupamentos de dez fileiras, ou trinta degraus, que antecedem as dez etapas dos bhumis, conforme estabelecido no Sutra Gandavyuha. Tanto o Dašabhumika quanto Sutra Gandavyuha também são capítulos dentro  da vasta elaboração do Sutra Avatamsaka sobre o desenvolvimento de bodhisattvas para se tornarem Budas. Dogen está dizendo que uma pessoa que entende o Buda Dharma transcende todas essas fases de desenvolvimento.

15 julho 2012

Chuva

Olha,
Entre um pingo e outro
A chuva não molha.
(Millor Fernandes)

13 julho 2012

O cérebro é mais vasto que o céu



O cérebro é mais vasto que o céu,
Pois se os pomos lado a lado,
Aquele o outro contém
Fácil - e a você também -

O cérebro é mais fundo que o mar -
Ponha-se azul contra azul -
Aquele o outro absorve -
Como a esponja baldes sorve -

O cérebro é do peso de Deus -
Sopese-os com precisão -
E vão diferir, se é o caso,
Como a sílaba do som.
(Emily Dickinson, 632. Trad. Aíla Gomes)

12 julho 2012

Vantagens dos dias de Ano Novo



Hoje é o começo de um novo ano [1241], e também de um dia com três manhãs. Digo três manhãs, porque é o início do ano, o início do mês, e o início do dia.

Eis uma história:

Um monge perguntou a Jingqing Daofu, "Existe Buda Dharma no início do ano novo ou não?"

Jingqing disse: "Existe”.

O monge perguntou: "Qual é o Buda Dharma no início do novo ano?"

Jingqing disse, "O dia do Ano Novo começa com uma bênção, e as dez mil coisas são completamente novas".

O monge disse, "Obrigado, professor, pela sua resposta".

Jingqing disse: "Este velho monge hoje perdeu a vantagem”.

Um monge perguntou a Mingjiao Zhimen Shikuan: "Existe Buda Dharma no início do ano novo, ou não?"

Mingjiao disse: "Não existe."

O monge disse: "Todo ano é um bom ano, todo dia é um bom dia, por que não existe [Buda Dharma no início do novo ano]?"

Mingjiao disse, "O Velho Zhang bebe e o velho Li fica bêbado”.

O monge disse: "Grande Mestre, [você é como] uma cabeça de dragão e uma cauda de serpente".

Mingjiao disse: "Este velho monge hoje perdeu a vantagem."

O professor Dogen disse: [Os dois professores] dizem a mesma coisa: "Este velho monge hoje perdeu a vantagem". Ouvindo essa história muitas pessoas dizem: "Essas são boas histórias sobre [professores] perdendo vantagem [em um diálogo]". Este monge da montanha [Dogen] não concorda. Embora Jingqing e Mingjiao falem de uma perda, eles ainda não veem um ganho. Suponha que alguém perguntasse a mim, Kosho, se há Buda Dharma no início do ano novo ou não.

Eu lhe diria: Há.

Suponha que o monge respondesse, "Qual é o Buda Dharma no início do novo ano?"

Este monge da montanha iria dizer-lhe: Possam cada um e todos os corpos, parados ou de pé, obterem dez mil bênçãos.

Suponha que o monge dissesse: "Nesse caso, de acordo com essas palavras, eu vou praticar".

Este monge da montanha lhe diria: Eu, Kosho, hoje levei vantagem em cima de vantagem.

Agora, por favor, pratiquem.
 (Dogen, Eihei Koroku, Fala do Salão do Dharma #32)

05 julho 2012

Não dualidade



Manjusri respondeu: “Bons senhores, todos vocês falaram bem. Não obstante, todas as vossas explicações são em si mesmas dualidade. Não conhecer nenhum ensinamento, não expressar nada, para não dizer nada, não explicar nada para não anunciar nada, não indicar nada e não designar nada - isso é a entrada na não dualidade."

Então o príncipe coroado Manjusri disse ao Licchavi Vimalakirti, "Todos nós temos dado os nossos próprios ensinamentos, nobre senhor. Agora, possa você elucidar-nos no ensino, da entrada no princípio, da não dualidade!"

Após isto, o Licchavi Vimalakirti manteve-se em silêncio, não dizendo nada.

O príncipe coroado Manjusri aplaudiu o Licchavi Vimalakirti: "Excelente! Senhor excelente, nobre! Esta realmente é a entrada na não dualidade dos bodhisattvas. Aqui não há nenhum uso para sílabas, sons, e ideias”.
(Sutra de Vimalakirti, circa 100 a.D.)

01 julho 2012

Curando a separação entre folhas de grama



Uma história. Sudhana estudava com Manjusri e Manjusri lhe disse: "Vá lá fora e traga-me de volta um talo de erva medicinal". Sudhana saiu e procurou por toda a terra, mas nada havia que não fosse medicina.

Ele voltou para Manjusri e disse: "Toda a grande terra é medicina. O que devo escolher e trazer-lhe?”

Manjusri disse: "Traga-me de volta um talo de erva medicinal." Sudhana arrancou uma folha de grama e deu-a Manjusri.

Manjusri segurou a única folha, mostrou-a para a assembleia e disse: "Esta folha de grama tanto pode matar uma pessoa e quanto pode dar-lhes vida”.

O mestre Dogen disse: Antes, uma folha de grama, depois, também uma folha de grama. O que separa a primeira da última?

Depois de uma pausa Dogen disse: O que as separa é apenas uma folha de grama.
(Dogen, Eihei Koroku, Fala do Salão do Dharma #16)

23 junho 2012

Um campo de algodão

Um campo de algodão -
como se a lua
houvesse florescido.
(Bassho)

22 junho 2012

Acendendo a Prática


A semente dos budas surge de condições, Buda Dharma surge desde o início. Quando vocês encontrarem boas condições, não tropecem, apenas pratiquem. Dentro da prática há tanto dominação quanto entrega. Ficando aqui [no Koshoji], não tropecem e, sinceramente, se engajem no caminho. Dentro do envolvimento de todo o coração no caminho há, ao mesmo tempo, prática e esforço. Com uma manhã rigorosa, dez mil dharmas se tornam completos. Se vocês ainda não estiverem engajados, dez mil dharmas tropeçarão.

Mestre Zen [Bao'en] Xuanze tinha afinidade com Fayan. Uma vez Xuanze foi designado orientador da assembleia de Fayan. Um dia Fayan disse, "Quantos anos você esteve aqui?"

Xuanze respondeu: "Eu já estive na assembleia do professor durante três anos".

Fayan disse, "Você é um estudante, então por que não você nunca me pergunta sobre o Dharma?"

Xuanze disse: "Eu não me atrevo a desapontar o professor. Quando eu estava no mosteiro de Qingfeng, realizei paz e alegria".

Fayan perguntou: "Por meio de quais palavras você conseguiu entrar?"

Xuanze respondeu: “Uma vez eu perguntei a Qingfeng, ‘Qual é o eu do aluno [ou seja, meu próprio ser]”?

Qingfeng disse: “O menino do fogo vem buscar o fogo".

Fayan disse: "Boas palavras, apenas receio que você não as tenha compreendido".

Xuanze disse: "O menino de fogo pertence ao fogo. Já sendo fogo, mas ainda buscando o fogo, é como já ser o próprio e ainda buscar a si próprio".

Fayan exclamou: "Agora eu realmente sei que você não entende. Se Buda Dharma fosse desse jeito, não teria durado até hoje".

Xuanze ficou passado e sobressaltou-se. Quando saiu a caminhar, pensou, "Ele é um professor orientador de quinhentas pessoas. Ao apontar meu erro deve ter alguma boa razão".

Voltou ao lugar onde estava Fayan e fez prostrações em arrependimento. Fayan disse, "Você deve fazer a pergunta".

Xuanze perguntou: "Qual é o eu do aluno?"

Fayan disse, "O menino do fogo vem buscar o fogo." Xuanze ficou grandemente iluminado.

O professor Dogen disse: Antes o menino do fogo veio buscar fogo. Depois, novamente, o menino do fogo veio buscar fogo. Antes, porque estava iluminado e seguiu o caminho do intelecto? Depois, porque estava muito iluminado e jogou fora o velho ninho? Vocês conseguem entender?

Depois de uma pausa Dogen disse: O menino do fogo vem buscar o fogo. Quantos pilares e as lanternas se preocupam com o brilho? O fogo está coberto de cinzas frias e, enquanto o procuramos, não o vemos. Acendendo-o e abanando-o, damos luz à prática.
(Dogen, Eihei Koroku, Fala do Salão do Dharma #15)

Sesshin de Outono no Mosteiro Pico de Raios


16 junho 2012

Expor e praticar em cima de um mastro de trinta metros

100 foot high Canadian totem pole

Dando um passo para frente ou para trás no topo de um mastro de cem jo, com uma mente única, vire seu rosto e transforme seu eu. Este monge da montanha [Dogen] permitirá que os pilares e lanternas exponham este princípio para todos. Eles já acabaram de expor ou não? Eles expuseram ontem à noite, e também na noite anterior. Amanhã eles vão expô-lo, e também depois de amanhã. Se eles tiverem terminado expô-lo, todos já ouviram ou não? Se vocês ainda não ouviram, os pilares e as lanternas ficaram preguiçosos e ainda não o expuseram. Portanto, este monge da montanha [Dogen] permitirá que toda a grande terra e todas as pessoas o exponham. Toda a grande terra e todas as pessoas acabaram de expor ainda ou não? Se ainda não expuseram, então  também ficaram preguiçosos. Expor e praticar este princípio são ambos o caminho final. Portanto, entre os ancestrais, disse Daci, “expor um metro não é igual a praticar dez centímetros. Expor dez centímetros não é igual a praticar um centímetro”.

Dongshan disse, "Pratique o que não pode ser exposto. Exponha o que não pode ser praticado”.

Yunju disse: "Ao expor não há caminho de prática. Ao praticar não há caminho de expor. Quando não há exposição ou prática, que tipo de caminho é esse?"

Luopu disse: "Se ambas a prática e a exposição acontecem, não há matéria original. Se nem prática ou a exposição acontecem, a matéria original existe".

O professor Dogen disse: Para Daci, expor um metro não pode ser feito sem praticar um metro; expor um centímetro não pode ser feito sem praticar um centímetro.

Para Dongshan. [Deve-se] praticar o que não pode ser praticado, e expor o que não pode ser exposto.

Para Yunju, há tanto prática e quanto exposição,  soltando e agarrando.

Para Luopu, se ambas a prática e a exposição acontecem, os país prospera; se nem prática ou exposição acontecem, os budas e ancestrais [lhes] confirmam.
(Dogen, Eihei Koroku, Fala do Salão do Dharma #10)

13 junho 2012

De onde nascem


Consideramos divinas bíblias e religiões -
   Não digo que não são divinas,
Digo que nasceram de ti, e
   podem ainda nascer,
Não são elas que te dão vida, és tu
   que lhes dás vida,
Elas brotam de ti, tanto quanto
as folhas brotam das árvores,
ou as árvores da terra.
(Walt Whitman)
  

11 junho 2012

Vindo e indo dentro da vida e da morte

Uma história. O Mestre Zen Yuanwu disse, "Vindo e indo dentro da vida e da morte é o corpo humano genuíno".

Nanquan disse, "Vindo e indo dentro da vida e da morte é o corpo genuíno".

Joju disse, "Vindo e indo dentro da vida e da morte é exatamente o corpo genuíno de todos os budas".

O professor [Dogen] disse: Cada um daqueles quatro veneráveis ancestrais revelam o estilo de suas famílias e, juntos, alinham nossas narinas. Eles disseram o que podiam dizer, apenas ainda não é aí. Se fosse Kosho [Dogen], eu não diria dessa forma, mas assim: Vindo e indo dentro da vida e da morte é apenas vindo e indo dentro da vida e da morte.
(Eihei Koroku, fala 74)

25 maio 2012

Dharma



Todos os dias, monges minuciosamente examinam o Dharma
e interminavelmente entoam complicados sutras.
No entanto, antes de a isso se dedicarem, deveriam aprender
como ler as cartas de amor enviadas pelo vento e pela chuva,
pela neve e pela lua.
Ikkyu (1394-1481)

08 abril 2012

Pingo de chuva


Olha,
Entre um pingo e outro
A chuva não molha.
Millôr Fernandes

Cartas de amor

A cada dia, os monges minuciosamente examinam o Dharma
e, interminavelmente, cantam sutras complicados.
Antes de fazerem isso, contudo, deveriam aprender
como ler as cartas de amor enviadas pelo vento e pela chuva,
pela neve e pela lua.
(Ikkyu, 1394-1491)

31 março 2012

Fukanzazengi - 54º e 55º Comentários de Coupey

Respeitem aqueles que já ganharam o conhecimento completo e que nada mais têm a fazer. Tornem-se uma só coisa com a sabedoria dos Budas e sucedam à iluminação dos patriarcas. Eis que se fizermos o zazen durante um certo tempo, isto tudo seremos capazes de realizar.

Respeitem aqueles que já ganharam o conhecimento completo e que nada mais têm a fazer. Frequentemente se compreende mal essa ideia. Isto não significa que se para de praticar e estudar o Caminho (ademais, um grande número de praticantes zen nem mesmo começaram a estudá-lo...). Isso quer dizer que eles estão além da prática e do estudo intencionais. Não caiam na armadilha sujeito-objeto, não coloquem uma cabeça em cima das suas. Estudar aqui, não é no sentido de buscar obter, procurar se desfazer das ilusões, procurar a verdade, mas no sentido de proteger, preservar.

É o que faz o discípulo zen no primeiro capítulo do Shodoka:
"Caro amigo, não vês
Este homem do
satori que parou de estudar e de agir.
Ele não descarta as ilusões, ele não busca mais a verdade."
É isto "respeitar aqueles que já ganharam o conhecimento completo": preservar, proteger o Dharma. E essa ação é a ação de todos os budas.

Essa passagem também quer dizer nós podemos alegrar-nos com a esplêndida atividade dos budas, que temos a chance de praticar juntos fazendo zazen em um dojo. É a realização do momento presente. E é também "tornarmo-nos uma só coisa com a sabedoria dos budas".

Quando Mestre Dogen fala para que "sucedamos à iluminação dos patriarcas", trata seguramente da relação profundamente íntima que existe entre os velhos patriarcas e ele, e que essa intimidade continua a existir entre ele e nós, eles e nós...


A casa do tesouro então se abrirá automaticamente, e a seremos capazes de gozar o quanto quisermos. 

Aqueles que obtiveram o segredo do satori dos patriarcas podem fazer o que quiserem com esse tesouro, eles estão livres. Um dia, Mestre Deshimaru me pediu que traduzisse (ou retraduzir) essa curta passagem do francês para o inglês. Eu a levei para casa e, quando a estudei, fui completamente tocado. Chorei. Havia naquela expressão uma tamanha liberdade...É jijuyu zanmai: tornar-se íntimo consigo mesmo, com o outro, com toda a linhagem. Não é nada de especial. É a condição normal. Zazen.

Isso me faz pensar no vigésimo-sétimo poema do Eiheikoroku do Mestre Dogen intitulado Poema dedicado aos meu discípulos:
"O vento varre o ensinamento claro e maravilhoso dos patriarcas.
No infinito, montanhas e rios se empilham dez milhões de vezes".
Quando estamos em zazen, o vento (o ensinamento dos patriarcas) escova, limpa e repassa nossa mente. E essas montanhas e esses rios que se empilham dez milhões de vezes são a paisagem de nossa vida. São coisas transmitidas sem transmissão. Sem linguagem. É o som da natureza, a voz do vale, o sermão dos seres não sencientes. É também o pio da coruja ou o canto do grilo.

Quando o zazen termina, ouve-se inicialmente o tambor que marca a hora, depois a madeira que marca o tempo que passa. E sobre essa madeira, lembrem-se, está escrita esta frase: "Se aqui e agora não resolvermos o problema de nossa cida e nossa morte, quando poderemos fazê-lo?" Escuta-se o "toc, toc, toc..." em três séries, cada vez com uma aceleração.

Zazen acabou.

Zazen quase acabou.

A vida também.

Acabou cedo.

Toc, toc, toc...

24 março 2012

Grande sol poente

Grande sol poente
chupa no horizonte
estrada serpenteante
Winston

Fukanzazengi - 53º Comentário de Coupey


Source: Hubblesite.org 
Se esforcem no caminho que indigita diretamente nossa natureza de Buda original.
Agora que vocês descobriram essa prática - e, através dela, o Caminho -, não virem à direita nem à esquerda, mas sigam diretamente em frente, sem se dispersarem.

Uma pessoa que pratica há muitos anos me disse que ela queria ir para T. porque não se sentia bem acolhida na nossa sangha. É verdade, o zen e frio. É a neve. É Bodhidharma. É Eka. É Tozan que diz que mesmo uma cabeça de defunto proclama o Caminho; é Deshimaru, que diz que, em zazen, todas as coisas de nossa vida devem ficar frias. Mas o coração está aí. É preciso encontrá-lo.

O coração não tem nada a ver com o apego. Quando sentamos em zazen, abandonamos nossas características adquiridas, desprendemo-nos de nossos sentidos pessoais. E o que sobra? O coração, a relação entre nós além de nossa pequena mente. Não há dogma, não há doutrina, nada. É por isso que todos os grandes mestres dizem sempre que nada mais há senão zazen, e é por isso que o zen é uma religião tão grande.

Partir para outro lugar não é grave. Façam como lhes aprouver. Mas não se esqueçam o que Dogen diz aqui: "Se esforcem no caminho que indigita diretamente nossa natureza de Buda original." Depois de T., onde vocês poderiam ir? Sobretudo quando o tempo pressiona. Pois ontem foi ontem, mas hoje devo morrer. E procurando tudo sempre, acaba que passei ao largo de tudo.

"Se esforcem no caminho que indigita diretamente nossa natureza de Buda original", quer dizer também, não percam tempo com os detalhes que nada mais são que ilusões. E consagrem todas as suas energias, seus ki, suas vidas, suas coragens e suas vidas a esse Caminho que aponta o absoluto sem volta.

25 fevereiro 2012

Quando eu houver partido...

"Quando eu houver partido, alguns de vocês se recolherão nas florestas e montanhas para meditar, enquanto outros beberão vinho e desfrutarão da companhia de mulheres. Os dois tipos de Zen são bons. Mas se alguém quiser se tornar monge profissional, e sair tagarelando por aí sobre o "Zen como o Caminho", considere-se desde já  meu inimigo".
(Ikkyu, monge Zen, 1394-1491, a seus discípulos, em anos próximos à sua morte).

Fukanzazengi - 52º Comentário de Coupey


Não fiquem nem um pouco surpresos por um dragão de verdade...

Não nos enganemos com o que é verdadeiro e o que não é, com o que é uma imitação
Eis uma história da China antiga: Sekko colecionava dragões de papel. Seu quarto estava cheio de pinturas de dragões. Ele adorava aquilo. Um dia, um dragão que passava no céu (o céu é ku, o vazio) achou que ia fazer Sekko feliz indo visitá-lo em sua casa, pois assim ele poderia ver um dragão de verdade. Ele enfiou a cabeça pela janela, mas Sekko não ficou nada feliz. Teve tanto medo que caiu desmaiado.
O dragão simboliza muitas coisas. É a realidade, o dragão real, não de papel. E a realidade é também nossa natureza original. Logo, poderíamos dizer que o dragão somos nós ou, ao menos, nós quando estamos em zazen.

Então lhes peço, nobres amigos da prática, peço-lhes imediatamente, a partir da experiência pessoal de vocês (e se o zazen não for uma experiência pessoal, não sei o que seja), a partir da sua experiência do vivido, não tenham medo do dragão, não tenham medo da verdadeira prática do zazen. Não tenham medo de se confrontarem com vocês mesmos, sem se mexerem. Não durmam durante o zazen. Não fujam do zazen pelos seus pensamentos. Nem por seus não-pensamentos. Pois é este o verdadeiro dragão, e esse dragão pode também amedrontar.

09 fevereiro 2012

O luar através dos altos ramos


O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.

Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.
(Alberto Caeiro)

Mondo com Eido Soho, no Templo Zen do Jardim Botânico, sábado 04/02/2012

08 fevereiro 2012

Fukanzazengi - 51º Comentário de Coupey

Sinceros praticantes Zen, não fiquem nem um pouco surpresos por um dragão de verdade, ou gastem muito tempo inutilmente apalpando apenas uma pequena parte do elefante.

Não gastem muito tempo inutilmente apalpando apenas uma pequena parte do elefante. Mestre Dogen faz aqui uma alusão a uma história contada no Sutra do Nirvana sobre as diferentes formas do elefante.
Um rei traz um elefante para junto de um grupo de cegos e deixa que o apalpem. Pede, em seguida, que descrevam o que acreditaram sentir. As respostas obtidas são muito variadas. Um pensa que sua tromba era um cano para água. Outro, que sua orelha era um grande leque; um outro, que sua perna era um pilar; um outro, que seu dorso era um trono etc. Cada um percebeu apenas a parte que havia tocado. E essas respostas, todas bastante diferentes, são, ao cabo, sinal de uma experiência pessoal bem limitada, ou simplesmente comum. Não é o olho do Caminho que enxergou, mas a palma da mão que interpretou. E com a palma não se alcança a totalidade do elefante.
Essa história representa a mente comum e não a mente do olho mais elevado, o olho de buda - e a diferença é grande entre o olho de Buda e o olho da mente comum. Dizemos sempre que não há diferença, mas não nos esqueçamos da diferença, e assim poderemos deixar cair o olho comum e enxergarmos através do olho do despertar.

Assim, Dogen falando a seus discípulos lhes diz: "Não fiquem nem um pouco surpresos por um dragão de verdade, ou gastem muito tempo inutilmente apalpando apenas uma pequena parte do elefante". Não temamos o dragão exterior, nem os demônios interiores. Se voltarmos nossos olhares para nós mesmos e olharmos lá onde nosso coração encontra-se na sombra (como o elefante no escuro), podemos iluminar nossa escuridão pessoal. Cada um de nós tem pontos de sombra. A maior parte das pessoas os evita. Mas nosso trabalho nessa prática não é evitá-los, tampouco analisá-los - não estamos no médico, estamos onde é preciso ter coragem de caminhar. Para cortar com nosso passado, com nosso futuro. Então não passaremos o resto de nossas vidas sem jamais esclarecer nossas mentes e, desse modo, todas as mentes.

Muitas vezes me coloquei essa questão: como enxergar os pontos de sombra no interior de nossos corações? Eu me impus essa coisa, esse "trabalho", observando-me diretamente. E acabei por me dizer que isso era impossível ou, pelo menos, muito difícil. Ao tentar verdadeiramente enxergar meus cantos negros, escuros, compreendi que isso queria simplesmente dizer tornar-me íntimo comigo mesmo. É pela intimidade com nós mesmos que é zazen, que podemos encontrar o verdadeiro eu, que não é nosso pequeno ego, aquele que exclui o outro, mas aquele eu que tudo abarca. Não tenhamos medo de olhar sob uma ótica mais elevada, a partir de uma visão mais ampla, cada coisa que encontrarmos, cada pessoa com a qual nos relacionarmos e também com cada objeto senciente ou não senciente.

19 janeiro 2012

Inundação



Eco dos trovões:
O aguaceiro, de repente,
faz subir o rio.
(Goga Masuda, 1911-2008)

16 janeiro 2012

O caminho que sobe e o caminho que desce são um único e o mesmo (Heráclito de Éfeso, 535 - 474 a.C)

O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
(T.S. Eliot. Burnt Norton. Trad. Ivan Junqueira)

06 janeiro 2012

Minha morada


Minha morada verdadeira
Não tem colunas
Nem telhado
Assim não pode a chuva inundá-la
Nem o vento derrubá-la!
(Ikkyu, 1394-1414)

Fukanzazengi - 50º Comentário de Coupey


Nossos corpos são como o orvalho nas relvas, e nossas vidas como o lampejo do raio, que num só momento se vai embora.

Forma e substância é o corpo, o corpo humano, vosso corpo. O destino, o destino daquele que nasceu e vai morrer.

"Não tenho tempo agora de praticar o Caminho, tenho que ganhar a vida, tem minha mulher, meus filhos, minha casa..." E depois? Depois? Os dias, os meses, os anos se escoam e nossa vida se acaba. Talvez, ao fim da vida, tenhamos conseguido aquilo que queríamos: dinheiro, posição, títulos, família, casa... Mas foi por isso que nascemos? Simplesmente por isso? Simplesmente para nos alimentarmos, dar uma boa impressão aos outros, de nossa posição, de nossos títulos, de nosso dinheiro, de nossa bela esposa, de nossos belos filhos? É tudo? É por isso que nos nutrimos?

Seguramente a grande maioria dos seres humanos quer isso. A mente comum quer isso. Mas, ao fim das contas, ninguém é profundamente comum e permanecer ou tornar-se comum não é desculpa. Nós não podemos dizer que não somos bastante inteligentes, que não temos uma posição tão elevada para poder praticar. A prática, a compreensão do Caminho, o satori, nada têm a ver com a posição de cada um, sua posição na sociedade, seus títulos, sua conta bancária. A prática do caminho é uma questão do coração. É uma prática do coração. É, para começar, libertar nossos corações das amarras impostas por nossa mente, nosso cérebro ignorante.

Mas não levamos isso a sério. Seguramente entendemos, mas agora é tarde demais, vamos morrer. Acabou e morremos com o coração ainda nas sombras, pois não aprendemos pela prática como retirar essa sombra, essa obscuridade. Não aprendemos. Não compreendemos como observar nossos pontos de sombra e, desse modo, durante toda uma vida até o túmulo, o coração permance aprisionado por ideias e conceitos equivocados.

Mujô. Impermanência. Tudo é mujô. Cada vez que um mestre ordena um monge, uma monja, um boddhisattva, ele lê a "Ação de graças". Esse texto evoca aquele que procura se dar um nome, construir belas coisas, "edificar um pagode aos sete tesouros mais alto que os trinta e três paraísos". Apesar disso, isso não é importante. Não se trata de construir (juntar nomes, títulos, dinheiro, uma mulher, duas mulheres, três mulheres, casas, automóveis...), mas de demolir. De retirar.

Frequentemente no han (a madeira pendurada à entrada dos dojos que batemos ao fim do zazen) está inscrita uma frase retirada do Sutra do Nirvana: "Se aqui e agora não resolvemos o problema da vida e da morte, quando poderemos fazê-lo?" É interessante que seja justamente esta frase que esteja escrita, pois quando escutamos a madeira sabemos que o zazen está quase acabado... Certamente foi por isso que o Mestre Deshimaru disse um dia, "Quando ouvimos soar essa madeira, devemos temer o tempo que passa". Nesse instante devemos esquecer tudo. Abandonar tudo. Pois depois será tarde demais. Pode parecer austero demais, mas não é. É apenas que, para aquele que anda no Caminho, doshin (a mente do Caminho) é primordial e todo o resto secundário. Entretanto, abandonar não quer dizer abandonar nosso trabalho, abandonar nossa esposa, nossa família, nossos filhos. Nada disso. Isso quer mais dizer algo claro, leve, sem peso e sem entraves, isto é, não ficar preso na aparência das coisas. E também nos interrogarmos sobre a correção de nossa própria prática.

Agora, quando estiverem sentados em zazen, escutem bem esse "toc". Ele lhes fala, ele nos fala mas a amior parte das pessoas não o escutam, enquanto o kyosakuman golpeia a madeira, eles pensam em outra coisa... "Toc, toc, toc..." E aquilo se acelera, "Toc, toc, toc, toc..." Como sua vida, como nossa vida.