23 outubro 2011

A que deverei comparar o mundo?



A que deverei
comparar o mundo?
Luz da lua, refletida
Em gotas de orvalho,
Caídas de um gerânio.
Dogen (1200-1253)


Moonlight

Fukanzazengi - 42º comentário de Coupey


Não é um princípio anterior aos conhecimentos e percepções?

O despertar ao qual Mestre Dogen aqui se refere situa-se além dos ruídos e imagens do mundo. É anterior aos conhecimentos e às análises. Não podemos apreendê-lo pelos poderes comuns. Cada um tem seus próprios ouvidos e ouve a mesma coisa de maneira diferente. O mesmo vale para os olhos. Mas tudo isso permanece sempre no mundo do ordinário, do comum. Não escutamos com os ouvidos da fé.

Pois penso que, afinal, tudo isso é uma questão de fé. Não a fé cristã ou budista, mas aquela vem de antes das religiões, antes que tenham sido ordenados monges, monjas e boddhisattvas. Seguramente existem todos os tipos de fé: a fé mona, um pouco de fé, mas não muito; a fé no mestre, mas não na prática ou, inversamente, a fé  na prática, mas não no mestre; e também a fé no ensinamento budista, a fé que vem da dúvida e, depois, aquela que vem do cosmo (essa ideia de cosmo me faz pensar no Buda quando se despertou ao ver a estrela do Norte, sua fé veio do exterior, não foi uma coisa fabricada por ele, mas também não era uma questão de Deus).

Li num jornal um desses assuntos variados que achei interessante. Um marinheiro está num cargueiro que atravessa o Pacífico e, um dia ao longo da viagem, ele cai ao mar sem que ninguém tenha visto, nem a tripulação, nem o comandante. Durante dez horas ninguém notou. Dez horas mais tarde, dão-se conta de seu desaparecimento. Alguns querem voltar, outros não. Parece impossível que o marinheiro ainda esteja vivo. Finalmente, o comandante decide dar a meia-volta. Dez horas se somam às dez horas, e eles encontram o marinheiro boiando na água, quase adormecido, mas são e salvo. Quando entrevistaram aquele homem, ele explicou que nada havia feito senão entregar-se totalmente ao momento presente. Como devemos fazer no zazen. Automaticamente, naturalmente, inconscientemente. Dessa forma, o marinheiro pode boiar, pode ser completamente um com a água do oceano.

A fé não depende da prática do zazen. Apesar disso, ela é o poder essencial, um "princípio", para empregar a linguagem de Dogen, "um princípio anterior aos conhecimentos e percepções".

Em zazen, somos como aquele marinheiro que flutuava na água, Ele está morto, e é por isso que vive. Nós também: não nos movemos, não pensamos, nossos sentidos nada fazem. E, além disso, estamos vestidos de preto..., perfeitos para nosso caixão! Zazen, é entrarmos no nosso caixão. É olharmos o mundo do ponto de vista do caixão(1). E no nosso hara. Senão, não podemos boiar. Kikai tanden, oceano da energia.
1. Esta imagem é de Kodo Sawaki.

16 outubro 2011

Queijo suiço


O que acontece com o buraco depois que acaba o queijo?
(Bertold Brecht, Um koan ocidental)

Fukanzazengi - 41º comentário de Coupey

Isso está além do que o homem ouve e vê - não é um princípio anterior aos conhecimentos e percepções?

O despertar está além do que se ouve e vê. Não pode ser compreendido através de qualquer dos seis sentidos. O sexto sentido é a mente, o cérebro frontal que dirige e controla os outros cinco, é a pequena mente que procura e serve-se dos cinco outros como ferramentas. Nós somos de tal modo dependentes de nossos sentidos, de tal modo temos os pés e punhos amarrados por nossa mente, por nossas ideias e pelas conclusões que daí tiramos, que o coração deixa de lá estar, ele fica perdido no escuro ("coração" aqui significa nossa natureza ao mesmo tempo universal e individual).

O praticante do zen compreende facilmente essa frase de Dogen. Mas ele sabe muito bem que isso não quer dizer que seja preciso rejeitar os sentidos. Rejeitar os sentidos é uma posição moralista (e às vezes ascética). Esta não é nossa prática. Para nós, não se trata de rejeitar os sentidos, mas de cortar os seis órgãos dos sentidos, bem como seus objetos de percepção. Frequentemente, falar disso causa medo. Os praticantes me confessam nos mondo que eles têm medo do ponto de vista "não humano", de não poderem confiar nos seus sentidos. Eu falo da liberdade total, não limitada pelo que vemos através de todos esses pequenos orifícios, não limitada pelo que se ouve por todos esses pequenos orifícios dos lados, e que entra nesse pequenino cérebro. Falo de nos libertarmos do pensamento frontal, de nossas ideias pessoais, que nada têm a ver com a realidade.

Como cortar os seis órgãos dos sentidos? Simplesmente através de uma expiração longa e profunda. Inconscientemente, naturalmente, automaticamente. E é a mesma coisa na vida quotidiana. Na vida quotidiana, não praticamos zazen. Apesar disso, praticamos o momento presente automatica e inconscientemente. Trata-se sobretudo de conhecermo-nos, e também de não sermos tolos. Ainda que isso provoque medo, pouco a pouco, continuando o zazen, nos liberamos desse apego aos sentidos, em notar. Não notamos nada, mas somos felizes.

Efetivamente, durante o zazen, não é difícil de fazer com que os sentidos nada façam. Num dojo, não temos necessidade dos olhos nem dos outros sentidos. "Não há olho, não há ouvido, não há nariz, não há língua", diz o Sutra do Coração que cantamos ao fim do zazen. Os olhos estão semiabertos, mas nada fazem. Os ouvidos estão à escuta e ouvem tudo, mas o que se ouve não é controlado pela mente, não se faz nada com isso. A mesma coisa para o nariz. Mas na vida quotidiana é mais difícil... Os olhos, por exemplo, vão se por a procurar uma bisnaga: são os olhos de um gaki, de um ser esfomeado.Ou os olhos vão procurar uma mulher: poderíamos dizer que se trata de olhos de um obcecado sexual. A mesma coisa para os ouvidos: eles se aprontam para escutar as conversas dos outros  - "Certamente estão falando mal de mim...". São ouvidos de um homem encolerizado, ou talvez de um espião.

Porque se diz que no zazen as orelhas devem estar no mesmo plano que os ombros, o nariz vertical e os olhos horizontais? Porque com a cabeça bem colocada no alto do corpo, a clareza da mente, a sabedoria, podem se elevar.

04 outubro 2011

O sapo e a lagoa

Bucchô, do mosteiro de Komponji, um monge de amplas leituras e profundas luzes, tornou-se o professor de Bashô. Indo ao templo de Chokeiji, em Fukagawa, perto de Edo, um dia, ele visitou o poeta, acompanhado por um homem chamado Rokusô Gohei.

Este, ao entrar no quintal da choça de Bashô, gritou:

-Como vai a lei de Buda neste jardim quieto com suas árvores e ervas?

Bashô respondeu:

- Folhas grandes são grandes, folhas pequenas são folhas pequenas.

Bucchô,então, aparecendo, disse:

- De uns tempos pra cá, qual tem sido seu empenho?

Bashô:

-A chuva em cima, a grama verde está fresca.

Então, Bucchô perguntou:

-O que é que era esta Lei de Buda, antes que a grama verde começasse a crescer?

Neste momento, ouvindo o som de um sapo que pulava na água, Bashô exclamou:

-O som do sapo saltando na água.

Bucchô ficou cheio de admiração a esta resposta, considerando-a uma evidencia do estado de iluminação atingido por Bashô. 

Deste momento, data esta microilíada zen, o mais célebre haikai, o mais lembrado poema da literatura japonesa, isto de Bashô:


Velha lagoa
 O sapo        salta
          O som da água

             (Bashô e Leminski, apud Tatiane Sousa, 2007)

Relâmpago



Admirável
aquele que ante o relâmpago
não diz: a vida foge...
                                                                                                   Basho (1644-94)

02 outubro 2011

Fukanzazengi - 40º Comentário de Coupey

Nem pode este assunto ser captado através de poderes sobrenaturais...

Nenhum poder sobrenatural permite conhecer melhor. Conhecer o que? Não apenas o despertar fornecido por um dedo, um polegar ou um hossu, mas também bodaishin: a mente do despertar, a mente que observa mujo, a impermanência do mundo.

Isso tudo quer simplesmente dizer que quando estamos sentados em zazen, nosso poder é um poder natural, não um poder sobrenatural. E através desse poder natural, podemos enxergar nossa natureza original, o que é impossível através de práticas sobrenaturais.

Mestre Nansen foi um dia à fazenda situada ao lado do mosteiro do qual era abade. Mas, na noite anterior, uma divindade especial do país da terra havia informado os camponeses de sua visita, que então prepararam uma grnade refeição para a sua chegada. Nansen ficou vivamente espantado: "Como vocês sabiam que eu viria?" "Foi a divindade da terra que nos avisou ontem à noite", explicou um dos camponeses. Nansen não era nada orgulhoso de sua prática e se dizia que ela era bem pobre para as divindades pudessem espionar o que passava por sua cabeça. Mas, na verdade, um grande mestre da transmissão, ele sabia muito bem o que havia se passado. As divindades puderam observar sua mente a partir do fato que ela ia numa direção particular e se colocava alguma coisa, no caso, sobre a refeição que teria lugar entre os camponeses, e não sobre nada. Ele não estava concentrado, mas agarrado a qualquer coisa. Nansen quando percebeu que não podia espiar sua mente, pôs-se a praticar profundamente o Caminho. E, pouco a pouco, sua mente já não se manifestava. Ele já não estava infleunciado pelos fenômenos, os shiki mentais. Pelo poder natural do zazen, Nansen tornou-se um com a sua natureza original, essa natureza que existe antes de todo primeiro pensamento, antes da criação do mundo. As divindade não puderam mais vê-lo. Nansen lhes tornou invisível.

Seguramente, os poderes sobrenaturais existem. Conhecer os acontecimentos passados ou futuros, por exemplo, é um poder sobrenatural adquirido por uma prática contínua, por um treinamento rigoroso levado a cabo dia após dia, ano após ano, "treinamento" que praticamos em nossa sangha. Através desse treinamento, frequentemente ascético, a consciência e acuidade se desenvolvem, aumentam, até o ponto em que se pode ver o que é despercebido, desconhecido. É um pouco como a união entre o finito e o infinito. Existem até práticas graças às quais podemos nos tornar invisíveis, a prática baseada na respiração, o ninjitsu, por exemplo. Com uma prática austera e severa, podemos também fazer sair do invisível demônios, fantasmas, espiritos malfeitores e outros.

Mas todos esses poderes, afinal, não são muito grandes, pois as pessoas que os obtêm não abandonam suas ideias falsas. Malgrado suas aquisições em poderes sobrenaturais, elas não entram no Caminho do despertar, no Caminho dos budas, no Caminho da grande liberdade. A base da nagia e do poder sobrenatural é a energia. Mas essas pessoas não conhecem a energia e o poder natural dos budas, dos bodhisattvas, dos sábios e santos. Apesar disto, é através desse poder que a verdadeira magia começa.

Eis um poema do Mestre Tozan:

"Além de ku,
Além de mu,
Se quereis feitos extraordinários,
Entro em casa e sento-me entre as cinzas".
Tozan entra em casa, senta-se entre as cinzas, criado a partir do interior, a partir de mu, a partir de nada. "Entre as cinzas", quer dizer, quando os pensamentos, as ideias, as opiniões, as emoções, os apegos, os problemas psicológicos, os desejos caem. Quando caem as folhas e a árvore se desnuda. É a partir daí que os grandes artistas criam, mas também os mestres autênticos, e não a partir do sobrenatural.

Antes de ter conhecido seu mestre Doshin e a prática do zazen, Gozu vivera uma vintena de anos solitário numa gruta na montanha. Levava uma vida muito ascética, meditava muito, era certamente vegetariano e não bebia álcool... Ele tinha criado também uma relação muito particular com os animais, sobretudo com os pássaros, que, sem dúvida por conta de sua prática ascética e de seus poderes sobrenaturais, passaram a se dele se ocuparem. Levavam-lhe flores à hora de sua refeição do meio-dia (um pouco como o discípulo Ungo Doyo a quem os pássaros levavam a comer). Ele possuía uma relação privilegiada com os tigres e os lobos que se alternavam para proteger a entrada de sua gruta dos salteadores e dos outros.

Um dia, Mestre Dosshin ouve falar de Gozu e decide ir visitá-lo na montanha. Ao chegar na gruta e percebendo a presença dos tigres, finge aparentar medo. Depois franqueia a entrada e Gozu, surpreendido, lhe pergunta: "Você está sempre assim?", "Como o que?", replica Gozu. Tal troca, à primeira vista, pode parecer banal, mas, de fato, tem um significado infinito. Você está como o que? O que é assim? Quem é que faz essa pergunta? Isso toca o musshin, não-mente, nada na mente. Gozu teve, no entanto, um grande satori. Desde aquele momento, isto é, desde que ele se torna disípulo do Mestre Doshin, os pássaros não vieram mais lhe trazer flores e os tigres e os lobos o deixaram. Gozu não teve mais um poder sobrenatural, maas simplesmente um poder natural. E, assim, ele reencontrou sua condição normal.

A condição normal é o início e o fim da prática. É também a condição original, nossa condição original.Vejam um mondo que ocorreu 240 anos após aquele encontro: o monge pergunta ao Mestre Joju: "Porque, antes de que Gozu encontrasse o Mestre Doshin, os pássaros lhe levavam flores e porque, depois, deixaram de fazê-lo?" Como Gozu tinha perdido aquele poder sobrenatural, aquela magia, depois de encontrar um mestre da transmissão? E eis o que respondeu o Mestre Joju: "Estamos cansados de carregar lenha para o fogo e de carregar água." Eu escutei essa resposta em um kusen com o Mestre Deshimaru. às vezes escutamos coisas qunado estamos em zazen e as circunstâncias, o silêncio no dojo, e o nosso estado de espírito ali faz com sejamos muito golpeados. Em seguida, li e reli essa história, bem como o diálogo entre o monge e Joju e, cada vez mais lemos algo, lentamente, observando cada palavra, mais aquilo se torna infinitamente profundo...