29 dezembro 2006

Sandokai - 12º Comentário de Suzuki

Um e todos, o sujeito e o objeto estão relacionados
E, ao mesmo tempo, são independentes.
Estão relacionados, mas funcionam diferentemente,
Mantendo cada um o seu próprio lugar.

No último comentário, expliquei como as pessoas se apegam a ji, “coisas”. Isto é comum. A característica do ensinamento de Buda é ir além das coisas – além dos vários seres, idéias e coisas materiais. Quando dizemos “verdade”, habitualmente queremos dizer algo que podemos imaginar. A verdade que podemos imaginar ou pensar é ji. Quando vamos além dos mundos objetivo e subjetivo, alcançamos a compreensão da unicidade de todas as coisas, a unicidade da subjetividade e objetividade, a unicidade do de dentro e do de fora.
Por exemplo, quando vocês sentam em zazen, vocês não estão pensando em nada, nem observando nada. O foco de vocês está a metro e pouco à sua frente, mas vocês não observam nada. Ainda que muitas idéias venham à cabeça, nós não pensamos sobre elas – elas vêm e vão, isto é tudo. Nós não as entretemos – não as convidamos para ficar ou lhes oferecemos comida ou qualquer coisa. Se elas vêm, tudo bem, e se elas vão, tudo bem. Isto é tudo. Isto é zazen. Quando praticamos desta maneira, mesmo que não tentemos, nossa mente inclui tudo. Não esperamos nem estamos preocupados com algo que possa existir além de nosso alcance.

O que quer que falemos sobre qualquer momento está dentro de nossa mente. Tudo está dentro de nossa mente. Mas habitualmente pensamos que existem muitas coisas: há isto, e isto, e isto aquilo. No cosmo, há muitas estrelas, mas neste exato momento só podemos alcançar a lua. Em alguns anos, poderemos alcançar alguns planetas e, eventualmente, algum outro sistema solar. No Budismo, mente e ser são unos, não são diferentes. Como não há limites para o ser cósmico, não há limites para nossa mente: nossa mente alcança todas as partes. Ela já inclui as estrelas, de modo que nossa mente não é apenas nossa mente. É algo maior que a pequena mente que pensamos que seja nossa mente. Esta é a nossa compreensão.

17 dezembro 2006

Sandokai - 10º Comentário de Deshimaru

A essência de todos os objetos visíveis possui segundo cada objeto
Qualidades e aparências distintas.
A origem da voz altera-se segundo a alegria
ou sofrimento.
Esta profundeza obscura é o mundo
Da combinação dos elementos
Em todas as direções,
Acima, abaixo, ao meio.
Mas em presença da luz, os objetos são claros,
E em sua posição existencial,
Podemos distinguir o que é puro do que é contaminado.

Os objetos dos sentidos possuem numerosas características muito distintas. O objeto visível tem uma cor e uma forma. Pode ser imaculado ou sujo, grande ou pequeno, redondo ou quadrado, longo ou curto. Um exemplo:
O céu azul.
Os telhados vermelhos.

O rosto é claro, podemos vê-lo à vontade no espelho límpido, enquanto os órgãos sexuais permanecem na escuridão.

A voz da alegria não é a voz do sofrimento, e não se perceberá da mesma forma a cor de um calção e de um kesa.

A percepção da voz e das cores predomina. Ela é representativa da atividade das seis portas. Os objetos visíveis têm uma forma, uma figura. São montagens da luz. A voz não tem forma, é montagem das sombras. A voz é profundidade. E, nesta profundidade, numerosos elementos se combinam (os sons agudos e graves, fortes e fracos).

O som do vale e seu eco ressoam muito longe nas profundezas...

10 dezembro 2006

Sandokai - 11º Comentário de Suzuki

Os primeiros versos do poema são a introdução: “O espírito do grande sábio da Índia transmitiu-se intimamente, diretamente, secretamente, do Leste para o Oeste”. Aqui, “grande sábio” pode também significar eremita. Ao tempo de Sekito, havia muitos eremitas taoístas que se orgulhavam de seus poderes sobrenaturais e que buscavam algum tipo de elixir para prolongar a vida. Eles não estavam muito interessados na prática budista e não podiam compreender porque praticar zazen era tão necessário. Esta também era uma questão para Dogen Zenji. Se todos temos natureza buda, porque é preciso praticar? Dogen padeceu muito com este ponto. Ele não podia resolver este problema através do estudo intelectual.

Quando vocês realmente conhecem a si próprios, vocês se dão conta de quão importante é praticar o zazen. Antes que vocês saibam o que estão fazendo, vocês não sabem porque praticamos. Vocês pensam que são bastante livres, que o que quer que façam são escolhas suas, mas, na realidade, vocês estão criando karma para vocês e para os outros. Vocês não sabem o que estão fazendo e então pensam que não há nenhuma necessidade de praticar zazen. Mas temos que pagar nossas dívidas e ninguém mais pode pagá-las. Por isso é que é preciso praticar. Para cumprir com nossa responsabilidade, praticamos. Devemos. Se vocês não praticam, não se sentem bem e também criam problemas para os outros. Mas se vocês não sabem disto, dizem, “Porque é necessário praticar o Zen?” Mais ainda, quando vocês dizem, “Temos natureza buda”, podem pensar que natureza buda é algo como um diamante na sua manga. Mas a verdadeira natureza buda não tem nada a ver com isto. Um diamante é ji, não é ri. Estamos sempre envolvidos com o mundo de ji sem realizarmos ri.

Tem uma outra coisa em que estou muito interessado. Tradicionalmente, como vocês sabem, os budistas dizem que o Budismo não durará para sempre. Os sutras dão vários tempos, mas habitualmente dizem que ele perecerá 1500 anos após a morte de Buda.

De acordo com a tradição, nos primeiros quinhentos anos, ao tempo dos discípulos diretos de Buda ou dos grandes-discípulos, haveria grandes sábios como Buda. Este é shobo, o tempo do Buda. Nos quinhentos anos seguintes, haveria pessoas que praticariam zazen e estudariam Budismo. Este é zobo, o tempo da imitação do dharma. Em mappo, o último período, começando mil anos depois da morte de Buda, as pessoas não observariam os preceitos. Leriam e cantariam os sutras, mas se interessariam pelo zazen. Seria difícil encontrar pessoas que praticassem zazen e compreendessem o ensinamento. Isto é verdade realmente. As pessoas hoje em dia não observam os preceitos.

E, em mappo, as pessoas estariam envolvidas com as idéias de vazio e ser, mas não compreenderiam o que elas realmente significam. Falamos sobre vazio e vocês podem compreendê-lo. Mas mesmo que vocês possam explicar muito bem, é ji, não é ri. O vazio real será experimentado – não experimentado, mas realizado – através da boa prática. Desta forma, a finalidade do Sandokai é deixar claro o que é vazio, o que é ser, o que é escuridão, o que é claridade, qual é a verdadeira fonte do ensinamento, e quem são os vários seres que são amparados pela verdadeira fonte do ensinamento.

30 novembro 2006

Sandokai - 9º Comentário de Deshimaru

Um e todos, o sujeito e o objeto estão relacionados
E, ao mesmo tempo, são independentes.
Estão relacionados, mas funcionam diferentemente,
Mantendo cada um o seu próprio lugar.

As portas são as seis entradas de nosso corpo, os seis sentidos. Na filosofia budista, a consciência é considerada como um sexto sentido. Um cão encurrala. Nossos ouvidos são a porta e o grito do cão é o objeto. Do mesmo modo, em zazen, o som do sino do templo... Vemos uma flor: a imagem da flor e nossos olhos não estão separados nem unidos. O homem e o cosmo, as portas da percepção e os objetos percebidos, se interpenetram totalmente. São ao mesmo tempo, um e múltiplos.

Os objetos, as cores, os sons, as vibrações existem independentemente de nós, em todo o universo, por todo o mundo. Apesar disto, a cor da flor e o som do sino só existem através de meus olhos e de meus ouvidos.

O homem é o homem. O cosmo é o cosmo. Cada um em suas posições. Mas, também, pela atividade das seis portas, o homem torna-se o cosmo e o cosmo torna-se homem: os dois se interpenetram. A raiz e as folhas são uma e a outra na sua posição existencial, com suas funções próprias. A raiz toma água da terra e as folhas, oxigênio do ar. Ao mesmo tempo, as raízes e os galhos se apóiam, se ajudam reciprocamente, combinam-se e fundem-se, mantendo relações de interdependência profundas e íntimas.

20 novembro 2006

Sandokai - 10º Comentário de Suzuki

Apegar-se às coisas é causa de ilusão.
Seguir e encontrar o absoluto
Não é a verdadeira iluminação.


“Apegar-se às coisas é causa de ilusão”. “Apegar-se às coisas” significa agarrar-se às múltiplas coisas que vocês vêem. Ao compreenderem que cada ser é diferente, vocês vêem cada um como algo especial e, habitualmente, vocês se apegam a algo. Mesmo que quando vocês reconhecem a verdade de que tudo é um, isto nem é sempre iluminação. Pode ser iluminação, mas nem sempre. É apenas compreensão intelectual. Uma pessoa iluminada não ignora as coisas e não se apega às coisas, nem mesmo à verdade. Não há nenhuma verdade que seja diferente do que cada ser é. Cada ser é em si mesmo a verdade. Vocês podem pensar que existe uma verdade controlando cada ser. Vocês podem pensar que esta verdade seja como a verdade da gravitação. Se a maçã é cada ser, então atrás da maçã existe alguma força se exercendo sobre a maçã, como a gravidade. Compreender as coisas deste modo não é iluminação. Apegar-se aos seres, idéias, até mesmo aos ensinamentos do Buda, dizendo, “o ensinamento do Buda é algo como isto”, é apegar-se ao ji. Esta é espinha dorsal do Sandokai.

“Seguir e encontrar o absoluto não é a verdadeira iluminação”. Reconhecer a verdade tampouco é iluminação. É melhor não dizer nada. Se eu traduzir ri para o português, já é ji. Na realidade, a iluminação não é algo que vocês possam experimentar. Está além de nossa experiência. Se alguém disser, “eu alcancei a iluminação”, está errado. Isto é ilusão. Ao mesmo tempo se vocês acharem que a iluminação está além da nossa experiência, que é algo que vocês não podem experimentar, ainda assim a iluminação está ali. Então vocês não podem dizer que não há iluminação nem que há iluminação. Iluminação não é algo que vocês possam dizer que exista ou que não exista. E, ao mesmo tempo, algo que vocês podem experimentar é também iluminação.

Em um dos meus últimos comentários, referi-me à grande disputa à época de Sekito, sobre a iluminação súbita ou gradual. O Sutra do Sexto Patriarca denuncia o caminho de Jinshu como sendo o caminho da iluminação gradual, ao mesmo tempo em que declara que o caminho do Sexto Patriarca é o da iluminação súbita. De acordo com o Sutra do Sexto Patriarca, parece que apenas sentar não é uma prática verdadeira.

Mas talvez esta não tenha sido uma idéia própria do Sexto Patriarca. Na realidade, não há tanta diferença entre o caminho de Jinshu e o caminho do Sexto Patriarca. O Sutra do Sexto Patriarca foi compilado logo após a morte do Sexto Patriarca e, talvez cinqüenta anos mais tarde, a crítica da escola da iluminação gradual de Jinshu tenha sido acrescentada por Kataku Jinne – um discípulo do Sexto Patriarca – ou por um discípulo de Kataku Jinne, após seu falecimento. Kataku Jinne foi um grande mestre Zen. Ele era muito ativo e crítico da prática de Jinshu, mas talvez não fosse tão áspero quanto as palavras do Sutra transmitem.

Kataku Jinne, ou seu discípulo, pode também ter adicionado este poema: “Não há árvore bodhi, não há espelho. Não há suporte para o espelho; não há nada. Como é possível limpar o espelho?”* Porque acham que este poema não é tão bom, muitas pessoas o criticam e pensam que ele não pode ser atribuído ao Sexto Patriarca. Naqueles dias era uma honra possuir uma cópia do Sutra do Sexto Patriarca. Existem muitas versões e as mais antigas não incluem este poema ou qualquer crítica à escola de Jinshu.

Assim, um dos objetivos do Sandokai é esclarecer essa compreensão errônea sobre Jinshu, que o fez parecer como apegado a rituais ou estudos acadêmicos. O estudo acadêmico pertence a ji. Ri é algo que você só pode experimentar através da prática. Vocês podem pensar que o trabalho acadêmico é ri, mas para nós não é. Para realizar ou obter uma compreensão completa de ri, para aceitar ri, é nossa prática. Mas ainda que vocês pratiquem o zazen e pensem que é ri, ou o alcance ou realização de ri, nem sempre é assim de acordo com Sekito. Se vocês compreendem isto, vocês já compreendem todo o Sandokai.
*O Quinto Patriarca Daiman Konin desejava encontrar seu sucessor. Ele pediu aos monges que escrevessem um poema que expressasse sua compreensão. Jinshu, o chefe dos monges, escreveu o seguinte poema, na parede, no meio da noite:
Nosso corpo é a árvore bodhi,
nossa mente, um espelho brilhante.
Limpe-os cuidadosamente a toda hora
e não deixe nenhuma poeira pousar.
Quando Eno viu isto no dia seguinte, disse ao monge que estava ao seu lado, “Também tenho um poema, mas como sou iletrado, você poderia escrevê-lo para mim?”
Não há árvore bodhi,
nem espelho que brilhe.
Uma vez que tudo é vazio,
onde pode a poeira pousar?
Quando Konin viu isto, soube que seu autor possuía a compreensão que buscava. Reconheceu Eno como seu herdeiro no Dharma e este se tornou o Sexto Patriarca.


06 novembro 2006

Sandokai - 8º Comentário de Deshimaru

Apegar-se às coisas é causa de ilusão.
Seguir e encontrar o absoluto
Não é a verdadeira iluminação.


Estamos aqui mais uma vez diante da mensagem fundamental do budismo Mahayana tal como expressa no antigo sutra que é cantado após o zazen, o Hanna Shingyo, ou Sutra da Sabedoria Suprema (Mahaprajna Paramita, em sânscrito):
shiki soku ze ku
ku soku ze shiki

Os fenômenos são a essência (o vazio) e a essência (o vazio) nada mais é que os fenômenos. E, uma vez que shiki torna-se ku e ku, shiki, é impossível privilegiar um dos dois termos. Ligar-se ao mundo dos fenômenos, ao universo material, é causa de ilusão, e não encontrar senão a essência, o vazio, não é verdadeiramente o despertar.
O budismo está além da dualidade da essência e da existência, como de toda dualidade. Para Dogen, o espírito e a matéria são um. Zazen engloba todas as contradições. Buda resolveu experimentalmente a questão com a qual se debate a filosofia ocidental desde Platão. Porque estamos nesta terra? Que somos nós, de onde viemos, para onde vamos? Ou melhor, o que vem primeiro, a essência ou a existência, a matéria ou o espírito, etc? Hoje, como há dois mil anos na Índia, o problema permanece o mesmo.
Nem existencialismo, nem essencialismo, nem materialismo, nem idealismo, a formulação do Caminho do meio por Nagarjuna é sempre pertinente. Devemos encontrar a raiz do ego, o princípio último do universo. E só poderemos resolver a crise de nossa civilização nos harmonizando com a ordem e energia do cosmo.

09 outubro 2006

Sandokai - 9º Comentário de Suzuki

A fonte original é pura e brilhante,
Sós os afluentes barrentos fluem na obscuridade.
“A fonte original é pura e brilhante”. A fonte é algo maravilhoso, às vezes além de qualquer descrição, além de nossas palavras. O que Buda transmitiu é a fonte do ensinamento, além da discriminação entre o certo e o errado. Isto é importante. O que quer que a sua mente venha a conceber, não é a própria fonte. A fonte é algo que apenas um buda conhece. Apenas quando vocês praticam o zazen, vocês a têm. Ainda assim, quer vocês pratiquem ou não, quer realizem ou não, algo existe, mesmo antes de nossa realização, que é a fonte. Não é algo que você possa provar. A fonte original nem tem gosto nem é insípida.

Os caracteres da primeira linha, Reigen myoni kokettari, referem-se a ri, a fonte do ensinamento além das palavras. A verdadeira fonte, ri, está além de nosso pensamento, ela é pura e sem máculas. Quando vocês a descrevem, vocês a limitam. Quer dizer, vocês maculam a verdade ou nela colocam uma marca. No Sutra do Coração está dito: “não há cor, não há som, não há gosto, não há mente”, e assim por diante. Isto é ri.

O próximo verso diz Shiha anni ruchusu – “os afluentes barrentos fluem na obscuridade”. Shiha significa “afluente”. Sekito diz shiha por razões poéticas: para tornar esses versos belos e para contrastar shiha com reigen, “fonte”. Reigen é mais “nomênica” e shiha é mais “fenomênica”. Dizer “numênica” ou “fenomênica” não é propriamente correto mas, tentativamente tenho que falar assim. Por isso é bom empregar os termos mais técnicos ri e ji aqui. Ji refere-se ao fenomênico – a algo que vocês podem ver, ouvir, cheirar, degustar bem como aos objetos de pensamentos ou idéias. Qualquer coisa que possa ser introduzida em nossa consciência é ji. Qualquer coisa além de nossa consciência – o numênico – é ri.

Na obscuridade, os afluentes fluem em toda a parte como água. Mesmo quando vocês não se dão conta da água, há água. A água está dentro de nosso corpo físico e também nas plantas: há água por toda parte. Da mesma maneira, a fonte pura está em toda parte. Cada ser é em si mesmo, pura fonte, e a fonte pura nada mais é que cada ser. Não há diferença entre ri e ji, fonte pura e corrente. A corrente é fonte pura, e a fonte pura é corrente. A fonte pura está correndo por toda parte, mesmo quando você não sabe. Este “não sabe” é o que chamamos obscuridade, e é muito importante.

06 outubro 2006

Sandokai - 7º Comentário de Deshimaru

A fonte original é pura e brilhante,
Sós os afluentes barrentos fluem na obscuridade
.

Esta fonte é o jorro do original, água pura e sem nenhuma sujeira.

Em zazen, se compreendemos nossa personalidade verdadeira, realizamos igualmente o que são nossas ilusões.

O Sandokai é a essência do Zen, sua dimensão é muito ampla, universal.

Se realizamos que a fonte da originalidade pessoal é ku, existência sem númeno, atingimos a compreensão de nossas ilusões e o sem-fundo da consciência infinita. A remontagem do subconsciente e seu cortejo de formações mentais nos fazem compreender a complexidade de nosso espírito e os desejos ilimitados que se elevam dos recônditos da consciência ilimitada.

Se chegamos a esta verdadeira originalidade, realizamos que nossa fonte espiritual é ku... Depois, ku torna-se shiki. A fonte espiritual brilhante e imaculada é poluída pela corrente dos fenômenos de nossa vida.

Permanecer apenas em ku: bloqueados em kontin – adormecimento – entorpecidos, tornamo-nos “demais nada”.

Ao contrário, permanecer em shiki: demais nos fenômenos, em saran – excitação - o arco se complica, fica submerso, “sujo e barrento”.

Uma água estagnada é barrenta. Uma água excessivamente remexida pelos numerosos fenômenos será igualmente suja e poluída. Devemos encontrar o Caminho do meio entre o bloqueio do kontin e a agitação excessiva do sanran.

A raiz torna-se tronco, galhos e folhas. Sobre os ramos, o broto torna-se botão, flor, fruto e, de novo, o ciclo recomeça... Não há nada fixo, é Dokan, a roda da vida, o anel do Caminho.
Ku
: Vazio. Vacuidade.
Shiki: Os fenômenos, as formas, as coisas visíveis.
Kontin: Adormecimento, torpor.
Sanran: Excitação.

28 setembro 2006

Sandokai - 8º Comentário de Suzuki

“Entre seres humanos não há sábios nem tolos” – Ninkon ni ridon ari. No Sandokai este ponto não é tão importante, mas é interessante compreender que potencialidade humana está presente no Budismo a fim de aprofundar nossa compreensão da prática e porque é necessário praticar zazen. Nin é “humano”, kon é “raiz” ou “potencialidade”; assim ninkon é “potencialidade humana”. Ri aqui quer dizer “alguém que tem alguma vantagem” e don significa “alguém que tem uma desvantagem”. Assim a raiz da potencialidade humana é tanto nossa vantagem quanto nossa desvantagem.

A capacidade da mente humana tem três aspectos: potencialidade, inter-relação e adequação. Temos a potencialidade de nos tornarmos Buda . É como um arco e flecha. Porque um arco e uma flecha têm potencialidade, se você usá-la, a flecha voará. Se você não usá-la, a flecha não voará. Se você estiver pronto para ser um buda, mas não praticar zazen, ou Buda não lhe ajudar, você não pode ser um buda, ainda que você tenha potencialidade.

Potencialidade tem dois significados. Um é “possibilidade”. Do ponto de vista de nossa natureza, temos a possibilidade de sermos budas. Por outro lado, se você me observar em termos de tempo, mesmo que eu tenha a possibilidade, se ninguém me ajuda, não consigo ser um buda. Do ponto de vista do tempo, potencialidade quer dizer algo como “possibilidade futura”. Este é o outro significado.

Quando compreendemos potencialidade em termos de natureza, podemos ser bondosos e generosos com todos porque todos têm naturalmente a possibilidade de se tornarem um buda. Mas quando pensamos em termos de “quando”, devemos ser muito rigorosos. Compreendem? Se vocês perderem este tempo, se vocês não fizerem um bom esforço esta semana ou este ano, se vocês disserem sempre “amanhã, amanhã, amanhã”, perderão a possibilidade de atingir a iluminação, ainda que tenham possibilidade.

Da mesma forma acontece com sua prática. Quando não pensam sobre tempo, vocês podem ser generosos com todo o mundo e podem tratar as pessoas muito bem. Mos quando vocês pensam sobre tempo, sobre hoje e amanhã, vocês podem não ser tão generosos porque estarão perdendo tempo. Assim dizemos, “Faça isto e farei aquilo”, “Ajude esta pessoa e ajudarei aquela outra”. Deste modo devemos ser muito rigorosos conosco. Por isso analisamos ki, potencialidade , tanto como “possibilidade” quanto como “possibilidade futura”.

Quando vocês compreendem potencialidade desta forma, podem trabalhar e praticar muito bem, às vezes de uma maneira muito generosa e às vezes de um modo muito rigoroso. Temos dois lados em nossa prática ou em nossa compreensão de ki. Este é o primeiro significado de ki – potencialidade.

Ki também significa “inter-relação” – neste caso, inter-relação entre um buda e alguém com uma natureza boa, e entre um buda e alguém com uma natureza má. Lamento dizer “natureza má”, mas tentativamente devo usar essas palavras. Devemos encorajar as pessoas que têm uma natureza boa oferecendo-lhes alguma alegria da prática. Quando praticamos com alguém que aparentemente não é tão bom, sofreremos com aquela pessoa. Este é o nosso entendimento. Assim, ki às vezes significa a “inter-relação entre alguém que ajuda e alguém que é ajudado”. Isto é também chamado jihi. Ji aqui quer dizer encorajar alguém. Hi, oferecer felicidade. Jihi habitualmente é traduzido como “amor”. O amor tem dois lados. Um, é oferecer alegria, yoraku, outro é diminuir o sofrimento, bakku. Para diminuir o sofrimento de alguém, nós sofremos com esta pessoa, compartilhamos seu sofrimento. Isto é amor.

Desta maneira, se alguém é muito bom, podemos compartilhar a alegria de praticarmos com ele, oferecendo-lhe uma boa almofada, um bom zendô, ou algo parecido. Mas um zendô não quer dizer nada para alguém que está sofrendo muito. Qualquer coisa que lhe dermos pode não ser aceita. Ele pode dizer, “Não preciso disto. Estou sofrendo muito. Não sei porquê. Neste momento, livrar-me do sofrimento é a coisa mais importante para mim. Você não pode ajudar-me, nada pode ajudar-me.” Quando vocês escutam isto, devem ser como o Bodhisatva Avalokitesvara – devem tornar-se como quem está sofrendo e devem sofrer como aquela pessoa que sofre. Em função de seu amor inato, seu amor instintivo, vocês compartilham o sofrimento. Isto é amor em seu sentido puro. Assim, ki significa não apenas “potencialidade” ou “possibilidade”, mas também “inter-relação”.

O terceiro significado de ki é “bons meios” ou “uso adequado”, algo como encontrar a tampa certa para um vaso. A banheira japonesa tradicional é de madeira e depois que nos banhamos, nós a cobrimos com uma grande tampa de madeira. A tampa não pode ser usada para um vaso. É muito grande. Assim o vaso deve ter sua própria tampa. Neste sentido, ki quer dizer “uso adequado”. Se vocês vêem pessoas sofrendo por conta de sua ignorância, porque não sabem o que estão fazendo, vocês choram, sofrem com elas. Quando vocês vêem pessoas que apreciam sua verdadeira natureza, vocês devem compartilhar sua alegria e encorajá-las. Isto é ter uma relação boa, adequada.

O próximo verso diz, “Mas no caminho não há patriarcas do sul ou do norte”. Isto é muito verdadeiro. O ensinamento de Jinshu é bom e o ensinamento do Sexto Patriarca Eno é bom. O caminho de Jinshu é bom para quem estuda as coisas vagarosa e deliberadamente. O ensinamento do Sexto Patriarca é bom para uma pessoa que tem uma mente aguda e rápida. Um professor pode explicar o ensinamento de Buda detalhadamente de tal forma que o aluno possa compreender palavra por palavra. Mas para outro aluno não é preciso argumentar usando tantas palavras. Depende da pessoa. A maneira de ensinar de um grande professor será singular. Mas não há diferença na compreensão verdadeira.

As pessoas ficam confusas por conta do modo como avaliamos as coisas, discriminando entre o tolo e o esperto. Mas, do ponto de vista dos Patriarcas, eles são o mesmo. Todos os Patriarcas entenderam este ponto. Não há Patriarca do Norte nem Patriarca do Sul. Esta é a compreensão de Sekito.

A propósito, Sekito foi na realidade discípulo do Sexto Patriarca, mas depois que o Sexto Patriarca morreu, Sekito tornou-se discípulo de Seigen, o Sétimo Patriarca. Este tipo de coisa ocorre com muita freqüência. Eu tenho alunos aqui, mas se eu morrer, aqueles que não completaram seu treinamento serão alunos de meus alunos. Estudar o Budismo não é como estudar outras coisas. Pode levar tempo até que vocês aceitem o ensinamento completamente. O fator mais importantes são vocês, mais que seu professor. Quando vocês estudam duramente, o que recebem de seu professor é o espírito do estudo. Aquele espírito que será transmitido de mão calorosa a mão calorosa. Vocês devem fazê-lo! Isto é tudo. Não há nada a ser transmitido a vocês. E o que vocês aprendem pode ser de livros ou de outros professores, de forma que temos tanto outros professores quanto um mestre. Alguns de vocês são meus discípulos. Chamamos os discípulos de um mestre de deshi. Aqueles entre vocês que não são meus discípulos são chamados de zuishin. Um zuishin é um seguidor. Alguém pode ficar muito tempo com algum professor, às vezes mais do que o período que alguém fica com seu mestre. Quando eu tinha trinta e dois anos, meu mestre faleceu, e a seguir estudei com Kishizawa Roshi e a maior parte da compreensão que tenho adquiri de Kishizawa Roshi. Mas meu mestre foi Gyokujun So-on. De qualquer modo, não há nenhum Patriarca do Sul nem do Norte. A verdade é uma só.

Praticar não é colecionar coisas e colocá-las em sua cesta, mas sim encontrar algo em sua manga. O que ocorre é que antes que vocês estudem duramente, vocês não sabem o que têm em suas mangas. “Buda e eu temos a mesma coisa. Oh! Isto é surpreendente!” Este é o espírito que devemos ter. Não importa o que eu diga, vocês devem estudar muito. Se vocês não gostam do que eu digo, vocês não devem aceitar. Está tudo bem. Eventualmente vocês podem aceitar. Se vocês disserem, “Não!”, eu direi, “Tudo bem, mas prossigam e estudem muito!” Eu creio que esta é a característica do Budismo. Nossa abordagem é muita aberta e, como Budistas, vocês têm uma enorme liberdade em seu estudo. O quer que vocês digam, está bem. De tal forma que não há nenhum Patriarca do Sul ou do Norte.

20 setembro 2006

Sandokai - 7º Comentário de Suzuki

O próximo verso diz “Entre seres humanos, há sábios e tolos”. É difícil traduzir esta passagem. Ela se refere à disputa entre as escolas do Norte e do Sul. A pessoa inteligente nem sempre tem vantagens para estudar ou aceitar o Budismo, e não é sempre o tolo quem tem dificuldades. Um tolo é bom porque é tolo. Um sábio é bom porque é sábio. Ainda que você os compare, não poderá dizer qual é melhor.
Eu não sou tão sábio, por isso compreendo isto muito bem. Meu mestre (Gyokujun So-on) sempre se dirigia a mim como “Seu pepino vigarista!” Fui seu último discípulo, mas tornei-me o primeiro porque todos os outros bons pepinos fugiram. Talvez porque fossem espertos demais. De qualquer modo, não fui esperto a ponto de conseguir fugir e fui pego. Minha estupidez era uma vantagem para estudar o Budismo. Quando todo o mundo foi embora e eu fiquei sozinho com meu mestre, fiquei muito triste. Mas eu havia deixado minha casa por minha própria escolha. Meus pais disseram, “Você é muito jovem. Devia ficar aqui”. Mas eu tinha que ir. Depois de deixar meus pais, eu senti que não podia voltar para casa. Eu podia, mas pensava que não podia. Então eu não tinha nenhum lugar para ir. Esta é uma das razões pela qual eu não fugi. Outra foi porque eu não era suficientemente esperto. Uma pessoa esperta nem sempre tem vantagem e um tolo é bom porque é tolo. Este é o nosso entendimento.Na realidade, não há tolos nem sábios. Qualquer das alternativas não é tão fácil. Há dificuldades tanto para o sábio quanto para o tolo. Por exemplo, um tolo tem que estudar duro e ler um livro várias vezes porque não é tão esperto. Uma pessoa esperta esquece rapidamente. Pode aprender rapidamente, mas o que aprende não fica por muito tempo. Para o tolo, toma tempo para memorizar algo, mas se ele lê muitas vezes e se recorda do que leu, aquilo não irá embora tão cedo. Ser sábio ou tolo não faz muita diferença.

13 setembro 2006

Sandokai - 6º Comentário de Suzuki

Um outro modo de explicar a realidade se dá pela diferenciação. Diferenciação é igualdade e as coisas têm igual valor porque são diferentes. Se homens e mulheres fossem a mesma coisa, as distinções entre homem e mulher não teriam nenhum valor. Porque são diferentes, os homens são valiosos enquanto homens, e as mulheres são valiosas enquanto mulheres. Ser diferente é ter valor. Neste sentido, todas as coisas têm um valor igual, absoluto. Cada coisa tem valor um valor absoluto e, assim, é igual a tudo mais. Nós normalmente estamos comprometidos com padrões de avaliação: valor de troca, valor material, valor espiritual e valor moral. Pelo fato de ter um padrão, você pode dizer “ele é bom” ou “ele não é tão bom”. O padrão moral define o valor das pessoas. Mas os padrões morais estão mudando sempre e uma pessoa virtuosa não é sempre virtuosa. Se você compará-la com alguém como o Buda, ela não é tão boa. Chega-se à idéia de bom ou mau por algum padrão de avaliação. Mas como cada coisa é diferente, cada coisa tem seu próprio valor. Este valor é absoluto. A montanha não vale mais porque é alta e o rio não vale menos porque é baixo. Por outro lado, porque uma montanha é alta, ela é uma montanha e tem um valor absoluto. Porque a água corre baixo no vale, a água é água e tem um valor absoluto. A qualidade da montanha e a qualidade do rio são completamente diferentes. Porque são diferentes, têm igual valor. E igual valor significa valor absoluto.
De acordo com o Budismo, igualdade é diferenciação e diferenciação é igualdade. A compreensão costumeira é que diferenciação é o oposto da igualdade, mas nosso entendimento é que elas são a mesma coisa. Um e muitos são o mesmo. Se você só enxergar a partir da perspectiva que diz que um é diferente de muitos, sua compreensão é materialista e superficial demais.

06 setembro 2006

Sandokai - 5º Comentário de Suzuki

O espírito do grande sábio da Índia transmitiu-se
Intimamente, diretamente, secretamente,
Do Leste para o Oeste.
Entre seres humanos, há sábios e tolos,
Mas no caminho não há patriarcas do sul ou do norte.

Quando Daiman Konin, o Quinto Patriarca, anunciou que ia proceder à transmissão do dharma, todos os monges pensaram que, entre eles, Jinshu seria o escolhido. Jinshu era um grande estudioso e havia ido para o norte da China, onde se tornara um grande professor. Mas, na realidade, foi Eno, que pilava arroz num canto do mosteiro, quem recebeu a transmissão e tornou-se o Sexto Patriarca. A escola de Jinshu foi chamada de Hoku Zen, ou Escola do Norte, e a de Eno espalhou-se pelo sul e foi chamada de Nan Zen, Escola do Sul. Mais tarde, após a morte de Jinshu, a Escola do Norte tornou-se mais fraca e a do Sul se fortaleceu. Entretanto, ao tempo de Sekito, a Escola do Norte ainda era poderosa.
O Sexto Patriarca, Eno, teve muitos discípulos. Contam-se cinqüenta, mas deve ter havido mais. O mais jovem, Kataku Jinne (Ch. Heze Shenhui), que era uma pessoa muito ativa e alerta, denunciou fortemente o Zen de Jinshu. Nós não podemos aceitar completamente seu ensinamento. Quem estudou o Sutra da Plataforma do Sexto Patriarca sabe que ali se denuncia duramente o ensinamento de Jinshu. O sutra pode ter sido compilado por alguém sob a influência de Kataku Jinne. De qualquer modo, havia um conflito entre o Zen do Sul de Eno e o Zen do Norte de Jinshu. Sekito desejava esclarecer esta disputa a partir de seu próprio ponto de vista. Por isso escreveu o Sandokai.
O poema começa, “O espírito do grande sábio da Índia transmitiu-se intimamente, diretamente, secretamente, do Leste para o Oeste”. A compreensão de Sekito é que o ensinamento verdadeiro do grande sábio Buda Shakyamuni inclui ambas as escolas do Norte e do Sul, sem qualquer contradição. Ainda que o ensinamento do grande sábio possa não ser compreendido completamente, ele ainda assim alcança todos os lugares. Se você tiver olhos para ver ou mente para compreender o ensinamento, verá que não é necessário se envolver nesse tipo de disputa. Porque alguns descendentes de Eno e Jinshu não compreenderam completamente o ensinamento de Buda, entraram em disputa. Do ponto de vista de Sekito não há necessidade de confronto.
“Transmitiu-se intimamente”. Mitsuni significa literalmente “exatamente, sem uma brecha entre os dois”. O principal propósito do Sandokai é explicar a realidade de dois lados. Como já disse, san quer dizer “muitos”; do quer dizer “um”. O que é muitos? O que é um? Muitos são um; um é muitos. Mesmo que você diga “muitos”, as muitas coisas não existem separadamente umas das outras. Elas estão estreitamente relacionadas. Se é assim, elas são um. Mas mesmo que elas sejam um, o um parece ser muitos. Assim, “muitos” está certo e “um” está certo. Mesmo quando dizemos “um”, não podemos ignorar os vários seres como estrelas, animais e peixes. Deste ponto de vista dizemos que são independentes. Quando discutimos o significado de cada ser, temos “muitas” coisas para discutir. Quando concluímos que, de fato, a realidade é apenas unicidade, todo a discussão ocorrerá nesta compreensão da unidade do um e muitos.

30 agosto 2006

Sandokai - 6º Comentário de Deshimaru

Do: não há nem Norte nem Sul no Caminho
Entre seres humanos, há sábios e tolos,
Mas no caminho não há patriarcas do sul ou do norte.
A inteligência de cada ser humano varia, mas, no caminho, todos os seres são idênticos. As fronteiras, as distâncias, os afastamentos do Sul e do Norte são abolidos.
Porque o Sul e o Norte?
Na China, da mesma forma que na Europa e na França, o Sul e o Norte diferem. A grande superfície da China cria fortes características próprias do Norte e do Sul, que se refletem na personalidade das populações. Os povos do Norte e do Sul se combatiam sem cessar, ambicionando, uns e outros, a supremacia do poder.
Porque Mestre Sekito escreveu esta frase?
Depois da morte de Konin, os dois grandes discípulos, Eno e Jinshu, se separaram.
Jinshu era um homem inteligente, sensível, muito hábil. Eno, de má aparência, era iletrado. E, no entanto, foi Eno quem recebeu a sucessão de Mestre Konin. O Zen, então, se dividiu em duas escolas: ao Norte, Jinshu, ao Sul, Eno.
Esses versos formam a introdução do Sandokai. Os versos seguintes desenvolvem a relação de Buda e do ego, a fusão de Buda e da própria personalidade.

22 agosto 2006

Sandokai - 5º Comentário de Deshimaru

Um dia, um monge feriu seu pé no caminho. Sua unha foi arrancada e a dor era muito forte. “Ai! Ai! De onde vem esta dor?”. E voltou ao templo de onde havia partido. Um outro monge lhe perguntou: “Porque tu voltaste? Porque tu regressas? Renunciaste à tua viagem?” Ele respondeu: “Bodhidharma não veio do Leste, Eka não se foi ao Oeste, e eu estou contente...”
Tudo é semelhante. O cosmo inteiro é desprovido de fronteiras e nacionalidades. Bodhidharma mora no cosmo e não é preciso distinguir o Sul e o Norte. O espírito tem a natureza do Buda, sem começo nem fim, ilimitado.
Se compreendemos conscientemente a natureza do Buda, há dualidade. Se os Budas tornam-se Budas, eles não podem ter a sensação de ser Buda. Quando nos tornamos objetivamente Buda, não podemos senti-lo. A natureza do espírito de Buda apenas se realiza quando nós o esquecemos. Neste instante preciso, somos autenticamente Buda. Os seres que se esquecem que são Budas são superiores àqueles que têm uma convicção pessoal. É por isso que digo sempre: mushotoku, sem finalidade... mas Hishiryo, além do pensamento e do não-pensamento.
A galinha e o ovo são diferentes. A galinha não está no ovo e o ovo não é a galinha. Mas, ao final, o ovo se transforma em pinto. A galinha, com seu bico, bate na casca do ovo e, simultaneamente, de dentro, o pinto lhe responde. A mãe bate, o pequeno responde, a casca se quebra e o pinto vê o dia. O pinto não sabe nada de ovo e o ovo não tem consciência do pinto. No entanto, houve uma mudança, um pinto nasceu.
A fé entre discípulo e o Mestre é fundamental. O Mestre observa seu discípulo do alto da cabeça até a ponta dos dedos do pé, passando até pelo ânus! De seu lado, o discípulo compreende tudo do Mestre: é a verdadeira fé. De Buda a Buda. I shin den shin.

16 agosto 2006

Sandokai - 4º Comentário de Suzuki

Se você praticar o zazen dessa maneira, é menos provável que você experimente dificuldades quando estiver desfrutando algum evento. Compreende? Você pode ter uma experiência e dizer, “É isso aí! Isto é como as coisas devem ser!” Se alguém discordar de você, você fica aborrecido(a). “Isto deveria ser desta maneira, e não daquela. O Centro Zen deveria ser deste jeito”. Talvez. Mas nem sempre. Se as coisas mudarem, nós perdermos o centro de Tassajara, e nos mudarmos para uma outra montanha, o jeito das coisas que temos aqui não será o mesmo que teremos lá. Assim, sem nos agarrarmos a algum jeito especial, abrimos nossas mentes para observar as coisas-como-é, e aceitar as coisas-como-é. Sem esta base, quando você disser, “esta é a montanha”, “este é meu amigo”, “esta é a lua”, a montanha não será a montanha, meu amigo não será meu amigo, e a lua não será a própria lua. Esta é a diferença entre agarrar-se a algo e o caminho de Buda.

O caminho de Buda é o estudo e o ensinamento da natureza humana, incluindo o quanto estúpidos somos, que tipos de desejos temos, nossas preferências e tendências. Sem nos agarrar a algo, tento lembrar-me da expressão “propenso a”. Somos propensos ou temos uma tendência de fazer algo. Este é o meu lema.

Quando eu estava preparando esta palestra, alguém perguntou-me, “O que é auto-respeito e como podemos adquiri-lo?” Auto-respeito não é algo que você sinta que tem. Quando você sente, “Eu tenho auto-respeito”, isto não é mais auto-respeito. Quando você é apenas você, sem pensar ou tentar dizer alguma coisa em especial, apenas dizendo que você está na sua e como você sente, o auto-respeito existe naturalmente. Quando estou estreitamente relacionado a todos vocês e a todas as coisas, então sou parte de um grande ser inteiro. Quando sinto algo, sou quase uma parte dele, mas não o bastante. Quando você faz uma coisa sem ter o sentimento de ter feito uma coisa, então é você, você mesmo. Você é completamente com todo o mundo e não se sente auto-consciente. Isto é auto-respeito.
Para termos esta prática quotidiana, estudamos muito. Quando alcançamos este lugar, não há nenhuma necessidade de dizer “um ser inteiro” ou “pássaro” ou “muitas coisas que incluem um ser inteiro”. Poderia ser apenas um pássaro ou uma montanha ou o Sandokai. Se você compreender isto, não haverá necessidade de recitar o Sandokai. Embora o recitemos numa forma sino-japonesa, não se trata de japonês ou chinês. É apenas um poema, ou um pássaro, e esta é apenas a minha palestra. Dizemos que o Zen não é algo sobre o qual falar. É o que você experimenta de uma maneira verdadeira. É difícil. Mas de qualquer modo, este é um mundo difícil, não se preocupe. Pode ser muito melhor ter esses problemas de prática do que outros tipos de problemas embaralhados.

11 agosto 2006

Sandokai - 4º Comentário de Deshimaru

O espírito do grande sábio da Índia transmitiu-se
Intimamente, diretamente, secretamente,
Do Leste para o Oeste.

(continuação)

Intimamente, diretamente, secretamente (mitsu). Nem mesmo a espessura de um fio de cabelo entre o discípulo e o Mestre. Unidade completamente acabada. Sem se olharem, a face do Mestre e a do discípulo são apenas uma. Os outros não podem compreender. Só eles dois compreendem. O verdadeiro amor existe sem dualidade. Cada um de nós possui este espírito antes de nascermos e continua durante nossa vida. É ku, e Buda, Bodhidharma, os Mestres da transmissão, como Eka, Eno, Yakusan, Sekito, realizaram-no.
De onde vem? De todas as partes. Não se pode compreender a fonte original.

02 agosto 2006

Sandokai - 3º Comentário de Suzuki

Quando eu digo ver coisas-como-é, quero dizer praticar com firmeza com nossos desejos – não livrar-nos dos desejos, mas levá-los em conta. Se você tiver um computador, você deve entrar com todos os dados: este tanto de desejo, este tanto de comida, este tipo de cor, este tanto de peso. Nós devemos incluir nossos desejos como um dos muitos fatores para a ver as coisas-como-é. Nem sempre refletimos sobre nossos desejos. Sem parar para refletir sobre nosso julgamento egoísta, dizemos “Ele é bom” ou “Ele é mau”. Mas alguém que é mau para mim, não é necessariamente sempre mau. Para outro alguém, pode ser uma boa pessoa. Ao refletir desta maneira, podemos ver as coisas-como-é. Isto é mente buda.
O poema começa com Chikudo daisen no shin, que significa “a mente do grande sábio da Índia”. Essa é a grande mente de Buda que tudo inclui. A mente que possuímos quando praticamos zazen é a grande mente: não tentamos ver nada. Paramos com o pensamento conceitual, paramos a atividade emocional, simplesmente sentamos. É como algo acontecendo no grande céu. Qualquer que seja o tipo de pássaro que nele voa, o céu não liga. Essa é a mente transmitida do Buda para nós. Muitas coisas acontecem quando você senta. Você pode ouvir o som de um córrego, pode pensar em algo, mas sua mente não liga. Sua grande mente está ali simplesmente sentando. Mesmo quando você não está se dando conta do que está vendo, ouvindo ou pensando, algo está acontecendo na sua grande mente. Observamos coisas. Sem dizer “bom” ou “mau”, simplesmente sentamos. Apreciamos as coisas mas não temos nenhum apego a elas. Nós as apreciamos completamente nesta ocasião, é tudo. Depois do zazen, dizemos, “Oh, bom-dia!” Desse modo, as coisas, uma após a outra, acontecerão para nós e seremos capazes de apreciá-las plenamente. Essa é a mente transmitida de Buda. E essa é a maneira que praticamos zazen.

27 julho 2006

Sandokai - 3º Comentário de Deshimaru

O espírito do grande sábio da Índia transmitiu-se
Intimamente, diretamente, secretamente,
Do Leste para o Oeste.
(continuação)


Vejam uma história:
Un discípulo de nome Esshin levava sempre sua vaca quando ia escutar conferências. Uma noite, quando voltavam de uma palestra sobre o Hokei Kyo (Sutra do Lótus), a vaca escreveu com seu casco, na areia do caminho. este Tanka*:
"Esta noite escutei que
mesmo as ervas e os bosques,

podiam se tornar Buda.
Estou muito feliz, pois tenho um espírito."

Qual o significado destes versos?
A vaca pensava que as plantas e as árvores tinham a possibilidade de realizar a natureza Buda, mas que não tinham espírito, enquanto ela já tinha um: "Sou apenas um animal, mas eu tenho espírito e possuo igualmente a natureza do Buda. Meu Mestre deu-me hoje um ensinamento precioso. Posso compreendê-lo graças a este espírito". Mas essa vaca era uma vaca dogmática, muito apaixonada. As ervas, as árvores, as pedras, todos os elementos do cosmo possuem a natureza de Buda. Tudo é espírito, o cosmo inteiro. Todas as existências do cosmo realizam este espírito. Da mesma forma que o próprio cosmo é este espírito.
Quando estamos em zazen, o próprio zazen é o espírito do Buda e inclui todo o cosmo.
*Tanka - Poema, um pouco mais longo que um hai-kai.

21 julho 2006

Sandokai - 2º Comentário de Suzuki

Originalmente, Sandokai era o título de um livro taoísta. Sekito usou o mesmo nome para o título de seu poema que descreve o ensinamento de Buda. Qual é a diferença entre os ensinamentos taoístas e budistas? Há muitas semelhanças. Quando um budista o lê, é um texto budista, e quando um taoísta o lê, é um texto taoísta. No entanto, na realidade, é a mesma coisa. Quando um budista come um legume, trata-se de uma comida budista, e quando um vegetariano o come, trata-se de uma comida vegetariana. Ainda assim, é apenas comida.
Como budistas, nós não comemos um legume em particular por conta do fato de que ele tem alguma qualidade nutritiva especial ou o escolhemos porque ele é yin ou yang, ácido ou alcalino. Simplesmente comer comida é a nossa prática. Não comemos apenas para sustentar-nos. Como dizemos em nossa recitação da refeição, "Para praticar o Caminho, comemos esta refeição". É desta maneira que a grande mente é incluída em nossa prática. Pensar "isto é apenas um legume", não é a nossa compreensão. Devemos tratar as coisas como parte de nós mesmos, no interior de nossa prática e da grande mente. Mente pequena é a mente que está submetida às limitações do desejo ou a um disfarce emocional ou à discriminação de bom e ruim. Assim, na maior parte do tempo, mesmo quando pensamos que estamos observando as coisas-tais-como-é, na realidade, não estamos. Porque? Por causa de nossa discriminação ou de nossos desejos. O Caminho Budista consiste em nos esforçarmos duramente para deixar de lado esse tipo de discriminação de bom e ruim, deixar de lado nossos preconceitos, e ver as coisas-como-é.

13 julho 2006

Sandokai - 2º Comentário de Deshimaru

O espírito do grande sábio da Índia transmitiu-se
Intimamente, diretamente, secretamente,
Do Leste para o Oeste.
(continuação)

Quando o Mestre Niojo deu o shiho a Dogen, este já havia recebido um ensinamento bastante reservado de sete dias e sua compreensão do Zen estava concluída.
"Eu te ministrei o ensinamento da pura essência do Zen. Mesmo que tu não tenhas tomado nota de nada, tu deves te lembrar de tudo aquilo. Eu te dou o kesa e a tigela que são os símbolos do Zen, da essência do Buda transmitida por Bodhidharma. Hoje tu compreendeste, não pela tua consciência, mas pelo teu corpo, o sentido profundo deste ensinamento. Apenas tu compreendes. Os outros não apreenderam esta essência. Morrerei sem me lastimar, pois agora estou feliz."
O espírito (shin) tem o sentido do espírito do Buda. Não está, portanto, limitado ao corpo do Buda Shakyamuni; ele é o espírito universal do verdadeiro corpo universal. Este dharma kaya (corpo do Dharma) é o samadhi do rei, a natureza do Buda, sem começo nem fim, não nascido, não morto, eterno, ilimitado, infinito no tempo e no espaço. Além do ku, o ku absoluto que tudo inclui. A participação apenas da consciência para esta compreensão é incompleta e sem autenticidade. Compreender realmente, autenticamente, pelo mais profundo de nosso corpo, é a verdadeira compreensão. Compreender ku, compreender todo o cosmo, e tudo é incluído neste cosmo. Este é o espírito do grande sábio. Não é o espírito do próprio Shakyamuni, mas o espírito de todo o cosmo, de ku.

05 julho 2006

Sandokai - 1º Comentário de Suzuki

Nosso esforço no Zen consiste em observar tudo como é. Mesmo quando falamos desta maneira, nós não estamos necessariamente observando tudo como é. Nós dizemos, “Aqui está meu amigo, lá está a montanha e, lá em cima, está a lua”. Mas seu amigo não é apenas seu amigo, a montanha não é apenas a montanha e a lua não é apenas a lua. Se pensarmos, “Eu estou aqui e a montanha está lá”, isto é uma maneira dualista do observar as coisas. Para chegar em São Francisco, devemos atravessar as montanhas Tassajara. Esta é nossa compreensão habitual. Mas esta não é a maneira budista de observar as coisas. Bem aqui. Isto é a grande mente dentro da qual tudo existe.

Olhemos agora o título, Sandokai. San literalmente quer dizer “três”, mas aqui significa “coisas”. Do é a igualdade, o mesmo. Para identificar uma coisa com outra é do. Também se refere à “unicidade” ou “o ser total de alguém”, que aqui significa “grande mente”. Assim nosso entendimento é que existe um único ser que tudo inclui, e que as múltiplas coisas são encontradas em um único ser. Embora digamos “muitos seres”, na realidade, eles constituem as múltiplas partes do único ser que inclui tudo. Se você diz “muitos” é muitos. E se você diz “um” é um. “Muitos” e “um” são maneiras diferentes de descrever um único ser. Para compreender completamente a relação entre um único grande ser e as múltiplas facetas deste único ser inteiro é kai. Kai significa cumprimentar com as mãos. Você tem um sentimento de amizade. Você sente como se dois fossem um só. Do mesmo modo, este único grande ser inteiro e as múltiplas coisas são bons amigos, ou mais que bons amigos, porque originalmente eles são apenas um. Portanto, quando nos cumprimentamos, dizemos kai. “Oi, como vai você?” Este é o significado do título do poema. O que é muitos? O que é um? E o que é a unidade de um e muitos?

27 junho 2006

Sandokai - 1º Comentário de Deshimaru

O espírito do grande sábio da Índia transmitiu-se
Intimamente, diretamente, secretamente,
Do Leste para o Oeste.


O espírito do Buda, como o ar e a luz, encontra-se em todos os lugares, em todas as direções e em todo o espaço. O espírito do Buda existe em cada espírito. O Sutra do Nirvana, o primeiro, afirmou a existência da natureza do Buda em cada coisa. A natureza do Buda é o original, a essência de cada elemento existente no cosmo. A natureza do Buda é a energia cósmica presente em cada vida. Buda, o sábio, aproxima-se desta energia contida nele mesmo. Ele funde esta energia com seu ego. O ego torna-se energia cósmica e a energia cósmica penetra o ego. É a realização da unidade ego-vida cósmica. O homem está em harmonia, em total unidade com o sistema cósmico.
(continua)

14 junho 2006


SANDOKAI

O espírito do grande sábio da Índia transmitiu-se
Intimamente, diretamente, secretamente,
Do Leste para o Oeste.
Entre seres humanos, há sábios e tolos,
Mas no caminho não há patriarcas do sul ou do norte.
A fonte espiritual é pura e brilhante,
Apenas os afluentes barrentos correm na escuridão.
Apegar-se às coisas é causa de ilusão.
Seguir e encontrar o absoluto
Não é a verdadeira iluminação.
Um e todos, o sujeito e o objeto estão relacionados
E, ao mesmo tempo, são independentes.
Estão relacionados, mas funcionam diferentemente,
Mantendo cada um o seu próprio lugar.
A essência de todos os objetos visíveis possui segundo cada objeto
Qualidades e aparências distintas.
A origem da voz altera-se segundo a alegria
ou sofrimento.
Esta profundeza obscura é o mundo
Da combinação dos elementos
Em todas as direções,
Acima, abaixo, ao meio.
Mas em presença da luz, os objetos são claros,
E em sua posição existencial,
Podemos distinguir o que é puro do que é contaminado.
Os quatro elementos retornam à sua fonte
Assim como uma criança retorna à sua mãe.
O fogo esquenta, o vento se move,
A água é úmida, a terra é dura.
Para os olhos, há a cor,
Os ouvidos percebem os sons, o nariz, os odores,
A língua diferencia o salgado do doce.
Mas todas as existências, como as folhas da árvore,
São alimentadas pela raiz.
A origem e o fim procedem da mesma fonte: ku.
A origem e o fim regressam ao nada.
Nobre ou vulgar são empregáveis a vosso gosto!
Dentro da luz, há escuridão,
Mas não tente entender essa escuridão.
Dentro da escuridão, há luz,
Mas não procure por essa luz.
A luz e a escuridão são um par,
Como um pé na frente e um pé atrás ao andar.
Cada coisa tem o seu próprio valor
E está relacionada com tudo o mais na função e na posição.
A vida comum encaixa-se no absoluto
Como uma caixa à sua tampa.
O absoluto funciona junto com o relativo,
Como duas flechas se encontrando no meio do ar.
Recebendo estas palavras, deveis
Compreender a grande realidade.
Não julgueis por quaisquer padrões.
Se não podeis compreender o Caminho,
Mesmo quando andais neste Caminho,
Não o podereis alcançá-lo.
Ao avançar vossos pés,
Aqui e agora,
Não há perto nem longe.
A menor dúvida vos colocará
A rios e montanhas de distância dele.
Respeitosamente peço a vós que procurais o caminho,
Não desperdiceis vossos dias e noites em vão.