21 dezembro 2007

A Palavra Aberta de Lo-Chan

O senhor Min Wang mandou construir um mosteiro para Lo Chan e lhe pediu que pronunciasse o primeiro sermão na sala de reuniões. Enquanto mestre daquela instituição, Lo Chan sentou-se numa cadeira e não pronunciou uma só palavra, se é que isto não é "adeus", antes de regressar a seu quarto. O senhor Min Wang aproximou-se e disse-lhe:

- Nem mesmo o sermão de Buda na montanha de Gradharkuta conseguiu ultrapassar o que ensinastes hoje.

- Pensava que fostes estranho ao zen, mas descubro agora que sabeis alguma coisa, respondeu L0 Chan.

Comentário de Nyogen: Esses dois homens viviam na China no século VIII, mas revelam ainda hoje - com que perfeição! - a beleza da incompletude àqueles que sabem apreciar as coisas interiores. Habitualmente, em um templo budista, encontra-se uma estátua de Buda sobre o altar. Mas um verdadeiro templo zen não possui nenhuma imagem. Um mestre toma o lugar de Buda, e se serve do altar como uma cátedra. Carrega consigo o manto que sua genealogia lhe legou, veste-o antes de seu sermão e despe-se imediatamente depois. Nosso Lo Chan deve ter feito o mesmo. O original chinês diz, "Ele ganhou seu assento, vestiu seu manto, levantou-se e disse 'adeus'. E este foi o fim de seu sermão". Que justeza na ação! Mas sobretudo, que nenhum noviço venha a imitá-lo! Isto seria pior do que venerar uma estátua de Buda. A iconoclastia, quando é apenas uma reação, acaba por aprisioná-lo numa torre de marfim. Destruir essa torre de marfim, eis a verdadeira iconoclastia. Se o senhor Min Wang fosse mais adiantado no zen, teria, sem dúvida, manifestado sua decepção de não ter compreendido o ensinamento do mestre, ainda que ele tenha captado perfeitamente a mensagem silenciosa de Lo Chan.

O crescimento de um mosteiro é tão lento e invisível quanto o das árvores e arbustos que o cercam. O mestre, os monges e os doadores plantam suas sementes mas não vêem a floração final. Porque não se alegrar simplesmente dedicando o dia presente à meditação? Tal é o ensinamento de Lo Chan, herdeiro do Buda, através de gerações de discípulos.

Quando dei meus primeiros passos nesta modesta sala, não havia nenhuma imagem de Buda, nenhum móvel, exceto um banco de piano. Sentei-me em silêncio naquele banco e juntei minhas mãos, palma contra palma. Aquele foi meu primeiro ensinamento neste zendô, e todos os que se seguiram desde então nada mais foram do que comentários. Se algum de vocês pensa em fazer conferências ou escrever ensaios sobre o zen, que se lembre desta história e que aprenda a dizer "adeus" alegremente.

19 novembro 2007

Hokyo Zanmai

Hokyo Zanmai

O Samadhi do Espelho Precioso

Mestre Tozan (807-869)

Hokyo Zanmai significa o "Samadhi do Espelho Precioso", que quer dizer concentração, neste caso, concentração em zazen. Secreto até bem pouco tempo, o Hokyo Zanmai é um texto essencial.

É preciso conhecer esse texto para tornar-se um monge Soto e de compreendê-lo perfeitamente para tornar-se um Mestre Zen. O Samadhi do Espelho Precioso é o canto da concentração em zazen. O Hokyo Zanmai, como o Sandokai e o Hanna Shingyo são recitados pelos monges todas as manhãs nos templos Soto Zen. Chamam esses três sutras de "a essência secreta do Zen Soto".

Esses sutras são difíceis de apreender e mesmo a maior parte dos monges que os recitam todas as manhãs não conseguem compreendê-lo profundamente. Até mesmo os professores. Um poema ou um canto, sobretudo quando ele é também antigo, é muito difícil de explicá-lo pela gramática ou pela leitura ordinária. O pensamento de Mestre Tozan, desejoso de explicar o espírito do Zen, encontrou-se limitado pelos ideogramas. Ocorre o mesmo hoje em dia para o espírito do Mestre. Devemos ver por detrás de suas palavras, escavar para chegar ao fundo do espírito. E isto através de nossa prática do zazen.

Tozan nasceu em 807 na China, a oeste do Rio Yan Po. É o décimo-primeiro patriarca depois de Bodhidharma. Seu Mestre da transmissão foi Ungan Donjo (782-841). Porque escreveu o Hokyo Zanmai? Graças ao seguinte acaso.

Um dia, durante uma de suas viagens, ele passou por uma ponte. Olhou a água que corria, e compôs o seguinte poema:

"Não procureis o caminho entre os outros

num lugar afastado

o caminho está sob nossos pés.

Agora vou só...

Mas posso reencontrá-lo por toda a parte;

ele agora certamente é eu,

mas eu não sou ele.

Também, quando encontro o que quer que seja,

posso obter a verdadeira liberdade."

Este poema serviu de base ao Hokyo Zanmai, mais particularmante o décimo verso, e tornou-se a fonte deste canto. (Taisen Deshimaru, 1981).

05 novembro 2007

Sandokai - 21º (e último) Comentário de Suzuki

Não há perto nem longe.
A menor dúvida vos colocará
A rios e montanhas de distância dele.
Respeitosamente peço a vós que procurais o caminho,
Não desperdiceis vossos dias e noites em vão.



“Não há perto nem longe”. Isto é muito importante. Quando vocês se envolvem em uma prática egoísta, vocês têm alguma idéia de obter algo. Quando vocês se empenham em atingir um objetivo ou alcançar a iluminação, naturalmente pensarão “Estou longe de meu objetivo”, ou “Estou quase lá”. Mas se vocês praticam de nossa maneira, a iluminação se encontra exatamente onde vocês estão. Isto pode ser um pouco difícil de aceitar. Quando vocês praticam o zazen sem qualquer idéia de obtenção, existe realmente iluminação.

Dogen Zenji explicava que na prática auto-centrada, há iluminação e há prática: prática e iluminação são eventos que encontramos em nossas vidas. Mas quando realizamos prática e iluminação com eventos que aparecem no reino do grande mundo do dharma, então a iluminação é um evento que expressa o mundo do dharma, e a prática também é um evento que expressa o mundo do dharma. Se ambos expressam ou sugerem o grande mundo do dharma, então não necessidade de nos sentirmos desencorajados se não alcançamos a iluminação. Nem deveríamos ficar extremamente felizes se a alcançamos, porque não há diferença. A prática e a iluminação têm o mesmo valor.

Se a iluminação é importante, a prática também é importante. Quando compreendemos este ponto a cada passo, temos iluminação. Mas não haverá necessidade de ficarmos excitados com isso. Passo a passo, continuaremos a prática sem fim, apreciando a bem-aventurança do mundo do dharma. Essa é a prática baseada na iluminação, a prática além do bem e do mal, além da prática auto-centrada.

Em nosso último comentário discuti a afirmativa de Sekito, “Se você não compreende o caminho bem à sua frente, com poderia conhecer a trilha quando anda?” O que quer que vocês vejam, é o dao. Ainda que vocês pratiquem, se não compreendem isto, sua prática não funcionará. Agora ele diz que se vocês praticarem nosso caminho em seu sentido verdadeiro, não haverá nenhum problema em estar longe do objetivo ou quase lá. A prática de um iniciante ou de um grande mestre Zen não são diferentes. Mas se vocês estiverem envolvidos apenas em práticas auto-centradas, será ilusão.

No próximo verso ele nos diz que se praticarem nosso caminho com um sentido dualístico de prática e iluminação, estarão separados do dao por dificuldades tão grandes quanto aquelas de cruzar rios e montanhas.

Então, ele nos diz, “Respeitosamente peço a vós que procurais o caminho, não desperdiceis vossos dias e noites em vão” – Koin munashiku wataru koto nakare. Ko aqui significa “raio de sol” e in significa “sombra”, assim koin quer dizer “noite e dia” ou “tempo”. Wataru significa “gastar” ou “passar”. Nakare, “não”, e munashiku, “em vão”. “Não passar seus dias e noites em vão” significa, “não dêem bobeira”.

Ainda que você trabalhem muito duro às vezes, vocês podem estar gastando seu precioso tempo sem, na realidade, estarem fazendo nada. Se não sabem o que estão fazendo, podemos dizer, “Oh, vocês estão passando seu tempo em vão”. Vocês podem dizer, “Não, estou me empenhando duro para colocar dez mil dólares na minha poupança”, mas para nós isto pode não fazer muito sentido. Ainda que vocês trabalhem muito em Tassajara durante o período trabalho, isto nem sempre quer dizer que vocês estejam fazendo a coisa certa. Se vocês dão bobeira, vocês estão desperdiçando seu tempo e, ainda que trabalhem duramente, pode ser que também estejam desperdiçando seu tempo. Isto é uma espécie de koan para vocês.

“Todo o dia é um bom dia”. Este koan não quer dizer que vocês não devam se queixar caso tenham alguma dificuldade. O que ele quer dizer é “Não desperdicem seu tempo em vão”. Eu acho que a maioria das pessoas desperdiça seu tempo em vão. “Não, estou sempre ocupado”, podem dizer. Mas se dizem isto, é certo que estão gastando seu tempo em vão. A maioria das pessoas faz algo com algum sentimento de finalidade, como se soubessem o que estão fazendo. Mas mesmo assim, não creio que tenham uma compreensão adequada de sua atividade.

Quando vocês fazem algo com uma finalidade baseada em alguma avaliação do que é útil ou inútil, bom ou ruim, mais ou menos valioso, sua compreensão não é perfeita. Se vocês fazem as coisas que precisam ser feitas a despeito de serem os resultados bons ou maus, bem ou mal sucedidos, esta é a prática real. Se fazem as coisas, não por conta de Buda, ou da verdade, ou de vocês mesmos ou de outros, mas pelas próprias coisas, este é o verdadeiro caminho.

Não posso explicar isso muito bem. Talvez não devesse explicar tanto. Vocês não devem fazer as coisas só porque se sintam bem, ou deixá-las de fazer porque se sintam mal. Há algo que devem fazer, quer se sintam bem ou mal. Se não têm esse tipo de sentimento quando fazem algo, ainda não começaram nosso caminho em seu sentido verdadeiro.

Não sei porque estou em Tassajara: não é por vocês ou por mim ou mesmo por Buda ou pelo Budismo. Apenas estou aqui. Mas quando penso que tenho que deixar Tassajara dentro de duas ou três semanas, não me sinto tão bem. Não sei porque. Não creio que seja apenas porque vocês sejam meus alunos. Não tenho nenhuma pessoa em particular a quem eu ame tanto. Não sei porque tenha que estar aqui. Não é porque esteja apegado a Tassajara. Não estou esperando nada no futuro em termos de um grande mosteiro ou do Budismo. Mas não quero viver no ar. Quero estar exatamente aqui. Quero ficar de pé em meus próprios pés.

O único modo de ficar de pé em meus pés quando estou em Tassajara, é sentando. Esta é a razão pela qual estou aqui. Ficar de pé em meus pés e sentar na minha almofada preta são as coisas mais importantes para mim. Não confio em nada a não ser em meus pés e em minha almofada preta. Eles são meus amigos sempre. Meus pés são sempre meus amigos. Quando estou na cama, minha cama é minha amiga; não há nenhum Buda, nenhum Budismo, nenhum zazen. Se vocês me perguntarem “O que é zazen?”, minha resposta será, “sentar na minha almofada preta” ou “caminhar com meus pés”. Ficar neste momento neste lugar é meu zazen. Não há nenhum outro zazen. Quando estou de pé em meus pés, não estou perdido. Para mim, isto é o nirvana. Não há necessidade de viajar, atravessar montanhas ou rios. Estou exatamente aqui no mundo do dharma, então não tenho dificuldades de atravessar montanhas e rios. É assim como não desperdiçamos nosso tempo. Momento a momento, devemos viver exatamente aqui, sem sacrificar este momento pelo futuro.

Na China, ao tempo de Sekito, o Zen Budismo era muito problemático. No fundo de cada ensinamento sempre havia alguma controvérsia. Havia muitas escolas de Zen que se perdiam freqüentemente em disputas. E porque estavam envolvida em idéias de ensinamento certo e errado, ou tradicional ou herético, perdiam o foco principal de sua prática. Por isso Sekito disse, “Não desperdiceis vosso tempo em vão”. Não sacrifiquem a prática real pela prática idealística, tentando atingir algum tipo de perfeição, ou tentando descobrir a compreensão tradicional ensinada pelo Sexto Patriarca.

Os discípulos do Sexto Patriarca compilaram o Sutra do Sexto Patriarca em diversas versões e cada um dizia, “Este é o caminho do Sexto Patriarca. Aqueles que não têm este livro não são descendentes do Sexto Patriarca”. Esse tipo de compreensão do Zen prevalecia durante aquela época. Por isso Sekito disse, “Respeitosamente peço a vós que procurais o caminho, não desperdiceis vossos dias e noites em vão”. Seguir nossa prática da maneira correta é não ser aprisionado por alguma idéia, algum ensinamento ou prática egoísta.

Isso às vezes é chamado de “a prática de polir telha”. Habitualmente as pessoas polem espelhos. Se alguém começa a polir um telha, vocês rirão dele. Mas polir uma telha, a faz brilhar. Alguém pode dizer, “Oh, é apenas uma telha. Não pode ser um espelho”. É a prática daqueles que desistirão facilmente, pensando, “Não posso ser um bom aluno Zen, tenho que desistir de sentar-me em zazen”. Eles não se dão conta de que uma telha é valiosa, às vezes mais valiosa que um espelho. Ninguém pode fazer um telhado com espelhos. Telhas são muito boas para fazer telhados, tanto quanto um espelho é importante para vocês se olharem. Esta é a prática de polir telhas.

Como vocês sabem, há uma história famosa sobre Nangaku, um discípulo do Sexto Patriarca, e Baso, seu aluno. Baso estava praticando zazen, quando Nangaku passou e perguntou, “O que você está fazendo?”.
“Estou praticando zazen.”
“Porque está fazendo isto?”
“A fim de tornar-me um buda.”
“Ah, é muito bonito você tentar tornar-se um buda”, disse Nangaku, que pegou uma telha e começou a poli-la.

Então Baso perguntou, com alguma curiosidade, “O que está fazendo?”
“Quero transformar esta telha em um espelho.”

Seu aluno perguntou se era possível transformar uma telha em um espelho. Nangaku respondeu, “Você disse que fazia zazen para ser um buda, mas um buda nem sempre é alguém que alcança a iluminação. Todo o mundo é buda, quer tenha ou não se iluminado”.
Baso disse, “Quero tornar-me um buda pela prática do sentar”.

Nangaku disse, “Você fala da prática na posição sentada. Mas sentar nem sempre é Zen. O que quer que você faça será zazen”.
Baso ficou perdido. “Então qual seria a prática adequada?”

Nangaku replicou, “Se uma carroça não anda, qual seria o modo adequado de fazê-la andar – golpear a carroça ou golpear o cavalo?” Baso não pôde responder porque ainda estava engajado em praticar para atingir algo.

Então Nangaku continuou com a sua explicação. Não lhes posso contar todos os detalhes, mas, em resumo, o que ele disse foi, “Tentar imaginar o que está certo – chicotear o cavalo ou chicotear a carroça – está errado, porque a carroça e o cavalo não estão separados, eles são uma coisa só”.

A prática e a iluminação são uma coisa só, como a carroça e o cavalo. Assim, quando vocês fazem uma prática física real, isto também é iluminação. Denominamos prática baseada na iluminação “a prática real que não tem fim”, e chamamos iluminação que começa com a prática e é una com a prática, “iluminação sem começo”. Quando alguém começa a praticar, há iluminação, e onde há iluminação, há também prática. Não há iluminação sem prática. Se vocês não permanecem neste ponto realizando sua posição, vocês não estarão praticando nosso caminho. Então estarão desperdiçando seu tempo se vocês estiverem sacrificando sua prática atual por algum alcance futuro. Isto não é prática real.

Sekito também foi um discípulo direto do Sexto Patriarca e conhecia muito bem a prática do Sexto Patriarca. Então, quando Kataku Jinne e seus discípulos começaram a denunciar a escola do Norte de Jinshu, Sekito sentiu-se mal por eles estarem apegados a alguma idéia sem realizar o que fosse a prática. Sua compreensão foi levada ao Japão por Dogen Zenji cinco séculos mais tarde. Dogen estendeu este entendimento, não apenas logicamente, mas mais amplamente, com mais sentimentos e de um modo mais poético, através de sua tenaz mente pensante.

Algumas pessoas dizem que o Sandokai não é um poema tão bom porque é filosófico demais. Pode ser que seja, caso vocês não compreendam o fundo do ensinamento de Sekito e se suas mentes não penetrem suas palavras. Dizemos “ler o verso do papel” – não apenas os caracteres impressos, mas o outro lado da página. É importante que compreendamos o Sandokai de Sekito desta maneira.

28 outubro 2007

Sandokai - 19º (e último) Comentário de Deshimaru


Respeitosamente peço a vós que procurais o caminho,
Não desperdiceis vossos dias e noites em vão.

O que é o Caminho?

Todos os fenômenos que encontramos. Shiki soku ze ku. Isto é a realidade verdadeira. Se não podemos compreender o Caminho pelos fenômenos, ainda que caminhemos bem longe, jamais chegaremos ao caminho. O verdadeiro progresso não depende nem do próximo nem do distante. Quando estamos concentrados na postura, o zazen torna-se eterno, verdadeiro satori. O Caminho não é um objeto externo como, por exemplo, os objetos dos seis sentidos.


O Caminho existe em nosso espírito, não é um objeto. O Caminho existe na fonte de nossa consciência. Quando a fonte de nosso espírito é mal compreendida, existe erro no Caminho verdadeiro. Este ponto é capital.


Se a fonte de nossa consciência se confunde com os objetos que nos cercam, nós nos enganaremos sobre o Caminho. E, ao contrário, se não há erro na fonte da consciência, o Caminho pode realizar-se verdadeiramente.


O Mestre de kendo que é forte espera sem paixão, tranquilamente, de pé, espada sobre os ombros, “como um leão à espreita”. Quando observa seu adversário ou seu parceiro, aquele que é mais fraco não se engana!


Pela prática do zazen tornamo-nos fortes, inconscientemente, naturalmente, automaticamente, sem nenhuma possibilidade de erro sobre as coisas. E devemos compreender que todos os fenômenos tornam-se o Caminho de nossa consciência.


Não compreender é como se encontrar no oceano e pensar que ele está vazio.


Todas as coisas transformam-se no Caminho.


Se duvidardes, não podereis jamais alcançar esse Caminho. Esta compreensão não passa pela inteligência do cérebro frontal. A verdadeira sabedoria está além da inteligência pessoal. A verdadeira sabedoria, nossa intuição, deve ser criada pela condição normal, original, da consciência em zazen. O Zen não faz diferença entre os atos da vida quotidiana e a prática da meditação sentada na postura de Buda.


Como abandonar nossas dualidades, nossas contradições, realizar a unidade?


Como enlaçar as contradições de nosso cérebro e de nossa vida quotidiana?


Como combinar o objeto e o sujeito, a matéria e o espírito, a diferença e a identidade?


É o San Do Kai, a interpenetração do Vazio e dos fenômenos, o Caminho do Zen.

30 setembro 2007

Sandokai - 18º Comentário de Deshimaru

Ao avançar vossos pés,
Aqui e agora,
Não há perto nem longe.
A menor dúvida vos colocará
A rios e montanhas de distância dele.


Andar pelo Caminho não significa estar perto ou longe. O problema não está aí.

Andar... Se permanecermos concentrados aqui e agora, um passo após o outro, chegaremos ao fim. Se experimentarmos a menor dúvida quanto à distância, não poderemos chegar jamais.

“Quando chegaremos?” A distância é grande, o tempo passa. E, enquanto pensamos, esquecemo-nos de caminhar.

No Soto Zen, fazer zazen e, em seguida, obter o satori, não está correto. Fazer zazen, aqui e agora, é satori, verdade. Uma pessoa que pratica o zazen para obter o satori poderá fazer zazen até a sua morte sem nunca compreender esse satori. Zazen é em si mesmo, satori. Devemos praticar zazen com a concentração do último zazen antes de nossa morte. Este zazen torna-se, então, a ação mais importante. Tal é o verdadeiro zazen.

16 setembro 2007

Sandokai - 20º Comentário de Suzuki

Recebendo estas palavras, deveis
Compreender a grande realidade.
Não julgueis por quaisquer padrões.
Se não podeis compreender o Caminho,
Mesmo quando andais neste Caminho,
Não o podereis alcançá-lo.

“Recebendo estas palavras, deveis compreender a grande realidade” – Koto wo uke te wa subekaraku shu wo seu beshi. Koto quer dizer “palavras”. Koto também inclui tudo: palavras, coisas e idéias que vemos ou ouvimos. Uke te quer dizer “receber” ou “escutar”. Shu é “a fonte do ensinamento”, que está além das palavras. Quando escutarem as palavras, vocês devem compreender a fonte do ensinamento, a grande realidade. Habitualmente ficamos agarrados às palavras, de tal forma que se torna difícil enxergar o verdadeiro significado do ensinamento. Dizemos que as palavras ou o ensinamento é o dedo apontando a lua. As palavras apenas sugerem o significado real da verdade. Se vocês se agarrarem ao dedo que aponta a lua, não poderão ver a lua. Não devemos agarrar-nos às palavras, mas devemos saber o significado real das palavras.

À época de Sekito, cada mestre tinha seu próprio jeito de introduzir o ensinamento real a seus discípulos. Como os alunos agarravam-se às palavras ou métodos particulares de seus professores, o Zen dividiu-se em muitas escolas e ficou difícil para os alunos saberem qual era o verdadeiro caminho. Na realidade, imaginar qual era o verdadeiro caminho já estava errado. Cada professor estava sugerindo o verdadeiro ensinamento, à sua maneira, da mesma fonte que era transmitida do Buda. Agarrar-se às palavras sem conhecer a fonte do ensinamento está errado, e isto era o que muitos professores e alunos da época de Sekito estavam fazendo. Por isso, Sekito aqui diz: recebendo essas palavras, vocês devem compreender a fonte do ensinamento que é transmitida do Buda e está além da maneira própria de cada professor de expressar ou sugerir a verdade.

A próxima sentença é, “Não julgueis por quaisquer padrões”. Vocês não devem estabelecer regras por vocês mesmos. Não devem se agarrar a regras ou ficar preso a elas. A maioria das pessoas faz isto. Quando vocês dizem, “Isto está certo!” ou “Isto está errado!”, vocês estabelecem regras. E porque dizem isso, naturalmente se agarram a elas ou ficam presos a elas. Isto foi porque o Zen dividiu-se em várias escolas. – Soto, Rinzai, Obaku, Ummon, Hogen e Igyo, Originalmente havia um ensinamento, mas cada professor ou seus discípulos estabeleceram uma escola, e ficaram agarrados a sua “família” e ficaram presos por ela. Eles compreenderam o ensinamento de Buda de acordo com seus padrões e então se agarraram à sua compreensão e pensaram que aquele era o ensinamento de Buda. Em outras palavras, eles se agarraram ao dedo que apontava a lua. Se três professores estavam apontando a lua, cada um tinha seu próprio dedo, e então já havia três escolas. Mas a lua é uma. Por isso Sekito diz para não estabelecer qualquer padrão.

Isto é muito importante para a nossa prática. Temos tendência a estabelecer nossas próprias regras, “Esta é a regra de Tassajara”, vocês podem dizer. Mas as regras são o dedo que aponta como temos boa prática em Tassajara de acordo com a situação. As regras são importantes, mas vocês não devem pensar: “Este é o único caminho”, “Nossas regras são o ensinamento permanente verdadeiro” ou “As regras deles estão erradas”. Vocês não devem se agarrar à sua compreensão própria das coisas. Aquilo que é bom para uma pessoa, nem sempre é bom para outra. Assim, vocês não devem fazer regras para todos. As regras são importantes, mas não se agarrem a elas nem as imponham a outros.

Quando vocês entram em um mosteiro, não devem dizer, “Tenho meu próprio jeito”. Quando vocês vêm a Tassajara, devem obedecer às regras de Tassajara. Não devem estabelecer suas próprias regras. Ver a lua real pelas regras de Tassajara é o jeito de praticar em Tassajara. As regras não são o ponto. O ensinamento que as regras capturarão é que é o ponto. Vocês naturalmente compreenderão o ensinamento real ao observar as regras.

Este ponto pode ser perdido por todos nós desde o começo. A maioria das pessoas começa a estudar o Zen para saber o que é o Zen. Isto já está errado. Elas estão tentando estabelecer alguma compreensão ou regras por elas mesmas.

A maneira de estudar o Zen deve ser do modo como um peixe pega seu alimento. Ele não tenta capturar nada. Ele nada simplesmente. Se alguma coisa boa aparece – snap! Ainda que esteja muito quente, vocês observam as regras de Tassajara, comendo no zendô quente como um peixe nadando a toa e se alguma coisa boa aparece – snap! Vocês obterão algo porque estão agindo assim. Não sei se vocês se dão conta, mas como vocês estão seguindo as regras, vocês obterão algo. Mesmo que vocês não tenham nada ou não estudem nada, vocês, na realidade, estão estudando, como um peixe que não parece saber o que está comendo. Isto é tudo. Devemos estudar o Zen desta maneira. Compreender não quer dizer compreender algo com suas cabeças.

Se vocês perguntarem a um estudante de Zen, “O que é bom?”, sua resposta pode ser “Algo que você deve fazer é bom, e algo que você não deve fazer é ruim”. É tudo. Não ficamos pensando tanto sobre o que é bom ou ruim.

Dogen Zenji diz, “O poder de “não deve” é bom”. Isto é algo intuitivo, nossa função mais íntima, nossa natureza inata. Nossa natureza inata tem sua própria função antes que vocês digam “bom” ou “ruim”. Às vezes parece ser bom, às vezes, ruim. Esta é a nossa compreensão. Mas a nossa natureza inata está além da idéia do bem e do mal. Ficar divagando porque praticamos zazen neste tempo tão quente nos leva à confusão. Devemos ser como o peixe, sempre nadando a toa no rio. Este é estudante Zen. Dogen Zenji diz, “O pássaro não precisa saber o limite do céu ou o que o céu era antes de nele voar”. Os pássaros simplesmente voam no grande céu. É como praticamos zazen.

Vocês não devem tentar estabelecer padrões por vocês mesmos. São palavras muito precisas. Podem não querer dizer muito, mas, na realidade, quando Sekito diz isto, ele os está esperando com um grande bastão. Quando vocês disserem algo, ele responde, “Não estabeleçam regras para vocês! Não tentem compreender através de suas cabeças!” Ele lhes espera assim! [Suzuki Roshi segura um bastão pronto para golpear]. Então não podemos dizer nada. Hai! [Sim!] – é tudo. Vocês não precisam nem dizer hai!. Vocês devem fazer as coisas como uma mula ou um burro.

Vocês podem pensar que isto é uma submissão absoluta, mas não é. É o caminho para compreender a fonte do ensinamento. Temos a tendência de ficar imaginando o que seja a fonte. Não é algo que se possa compreender através das palavras, mas algo que se tem quando se faz as coisas muito naturalmente e intuitivamente, sem dizer “bom” ou “ruim”. O tempo vai passando e não temos tempo de dizer “bom” ou “ruim”. Devemos seguir o fluxo do tempo, momento após momento. Vocês devem seguir com o tempo. Quando vocês ficam cansados de fazer alguma coisa, vocês podem falar mal disto ou daquilo, apenas para matar o tempo. Mas quando vocês vêem os legumes no jardim quase secos por conta do calor, vocês não têm muito tempo de discutir o qual é a coisa mais adequada para fazer hoje. Enquanto discutem, ficam cada vez mais famintos. Então, o pessoal da cozinha deve ir para a cozinha e preparar a comida para a próxima refeição. Esta é a coisa mais importante.

Isto não quer dizer que seja perda de tempo pensar sobre as coisas. É bom pensar sobre as coisas, mas não devemos nos agarrar demais às palavras ou regras. Este ponto é muito delicado. Devemos continuar nossa prática em Tassajara sem ignorar as regras e sem nos agarrarmos às regras. É isto o que Sekito está sugerindo.

E então ele diz, “Se não podeis compreender o Caminho, mesmo quando andais neste Caminho, não o podereis alcançá-lo”. O único jeito é usar os seus cinco órgãos dos sentidos onde quer que vocês andem e simultaneamente compreender a fonte do ensinamento. Se vocês não fizerem isso, ainda que movam seus pés ou prática, não poderão alcançar o verdadeiro caminho.

Assim, a coisa mais importante não são as regras, mas encontrar a verdadeira fonte do ensinamento com seus olhos e ouvidos onde quer que estejam. Este é o caminho direto para conhecer a fonte do ensinamento, sem estabelecer um caminho particular para vocês. Se vocês se agarrarem às palavras, não verão o caminho verdadeiro através de seus próprios olhos, ouvidos, narizes e línguas. Se vocês se agarrarem a regras e ignorarem a experiência quotidiana da vida, ainda que pratiquem zazen, não funcionará. Adquirir alguma experiência direta da vida quotidiana sem pensar “Rinzai” ou “Soto”, “este caminho”, “aquele caminho”, é a coisa mais importante. É desta maneira que entendemos a fonte verdadeira do ensinamento transmitida do Buda.

O caminho verdadeiro pode ser um bastão. O caminho original de Buda podia ser uma pedra. Como Mestre Ummon dizia, poder ser papel higiênico. Qual é o verdadeiro caminho? O que é Buda? Buda é algo além de nossa compreensão. Buda poderia ser qualquer coisa. Em vez da palavra “Buda”, poderíamos simplesmente dizer “papel higiênico”, ou “três libras de cânhamo”, como disse Tozan. Então se alguém lhes perguntar, “Quem é Buda?”, a resposta pode ser, “Você também é Buda”. Se alguém perguntar, “O que é a montanha?”, vocês podem responder, “A montanha também é Buda”. Em japonês dizemos mo mata – “também”. Vocês não devem dizer simplesmente “Isto é Buda”. Esta afirmativa pode levar a alguma incompreensão. Mas se vocês disserem, “Isto também é Buda”, está tudo bem. Quando alguém pergunta, “Onde está Buda?”, vocês podem dizer, “Aqui está Buda também”. “Também” não é tão definido. Buda também pode estar em outro lugar. O segredo da assertiva Zen perfeita é “Nem sempre é assim”. Enquanto vocês estiverem em Tassajara, essa é nossa regra, mas nem sempre é assim. Vocês não devem se esquecer deste ponto. Isto também é uma regra de Buda. Quando vocês sabem disso, não há perigo e vocês não provocarão nenhuma incompreensão. É dessa maneira que vocês se libertarão de uma prática egoísta. Ainda que vocês pensem que estão praticando o caminho de Buda, vocês estão inclinados a envolverem-se em uma prática egoísta quando dizem, “O caminho deve ser como isto”. Vocês devem dizer definitivamente, “Este é nosso caminho de Tassajara”. Mas devem estar prontos para aceitar algum outro caminho.

Isso é bastante difícil – ter uma confiança rígida e forte em sua própria prática e ser flexível o bastante para aceitar também o caminho do outro. Vocês podem achar que estar pronto para aceitar o ensinamento do outro não seja um caminho rígido. Mas, a menos que vocês estejam prontos para aceitar a prática de outros, vocês não podem ser tão rígidos com sua própria prática. Rigidez pode transformar-se só em teimosia. Apenas quando vocês estão prontos para aceitar a opinião de alguém, vocês podem dizer “Você deve fazer assim!”. Quando outras pessoas chegam, podemos observar seu jeito. De outro modo, vocês não podem ser tão rígidos com vocês mesmos.

Habitualmente rigidez significa ser estrito, ser apanhado por sua própria compreensão e não dar espaço à compreensão de outros. Quando alguém perguntava a opinião de meu mestre sobre algum assunto, ele sempre dizia, “Quando você me pergunta, minha opinião é esta!” [Suzuki golpeia a mesa com seu bastão]. Quando ele dizia isso, era muito enfático. Ele podia ser tão enfático porque dizia, “Quando você me pergunta”. Este é o nosso caminho. Ser apenas você mesmo para aceitar também a opinião do outro. A cada momento vocês devem intuitivamente saber o que fazer. Mas isto não quer dizer que vocês devam recusar as opiniões dos outros.

Na vida quotidiana, há dao, o caminho, e se vocês não praticarem no meio da atividade quotidiana, não há aproximação do caminho verdadeiro. Isto é o que Sekito quer dizer. Não se agarrem às palavras. Não estabeleçam seus próprios padrões e os imponham sobre os outros. Não é possível impor regras sobre outros de qualquer maneira porque cada pessoa tem seu próprio caminho e deve ter seu próprio caminho.

02 setembro 2007

Sandokai - 17º Comentário de Deshimaru

Se não podeis compreender o Caminho,
Mesmo quando andais neste Caminho,
Não o podereis alcançá-lo.


Este enunciado encontra-se igualmente no Shobogenzo de Dogen no capítulo que trata do tempo. Aqui e agora, o tempo é muito importante. Devemos compreender aqui e agora. Se não pudermos compreender, não poderemos garantir o sucesso futuro. Alguns dizem sempre: “Espera, espera!”, mas não podemos descuidar do trabalho.

O aqui e agora inclui a eternidade. A ação de aqui e agora é ação do corpo, ação da palavra, ação da consciência. Se as ações não são justas, o futuro sofrerá uma influência negativa. O não agir, inclusive, é dar um mau passo para o futuro. Por isso, nos templos zen, é preciso alinhar bem os sapatos. Antes do zazen sempre observo a posição dos sapatos. Com isto posso compreender as consciências e as características do dia, aqui e agora.

Certas pessoas me dizem, “Estou muito ocupado, tenho pouco tempo, não posso fazer zazen. Se tivesse tempo, logo faria zazen, mas tenho que ganhar dinheiro... depois farei”. É uma loucura! No dia seguinte, a morte pode chegar... Na vida moderna, a morte chega de improviso. Lamentar-se de nada adiante. Aqui e agora é o que importa.

25 agosto 2007

Sandokai - 19º Comentário de Suzuki (conclusão)

O Budismo não trata os seres humanos como se pertencessem a uma categoria especial. Colocar os seres humanos em uma categoria especial é ilusório e egoísta. No entanto, é normal para os seres humanos pensar dessa maneira, sem refletir para dentro, mas buscando alguma verdade fora de si mesmos. Quando você procura uma verdade fora, significa que seu pano de fundo não é grande o bastante. Você deve encontrar alguma confiança dentro de você mesmo.

O Sandokai diz aqui que todas as coisas têm sua própria virtude ou mérito. Como seres humanos, temos a nossa natureza própria. Apenas quando vivemos como seres humanos, que têm uma natureza humana auto-centrada, seguimos a verdade em seu sentido maior, porque estamos levando nossa natureza em conta. Assim devemos viver como seres humanos neste mundo. Não deveríamos tentar viver como gatos ou cães, que têm mais liberdade e são menos auto-centrados. Os seres humanos devem ser postos em uma jaula, uma grande jaula invisível como a religião ou moralidade. Os cães e gatos não dispõem de tal jaula especial. Não necessitam de qualquer ensinamento ou religião. Mas nós, seres humanos, precisamos de religião. Nós, humanos, devemos dizer, “desculpe”, mas cães e gatos não precisam. Desta forma, nós humanos, devemos seguir nosso caminho, e os cães e gatos devem seguir seus caminhos. É desta forma que a verdade se aplica a todas as coisas.

Se observarmos nosso caminho humano e os cães e gatos observarem seus caminhos animais, parecerá que os humanos e os animais têm naturezas diferentes. Mas embora suas naturezas sejam diferentes, seu pano de fundo é o mesmo. A aplicação da verdade deve ser diferente porque onde vivemos e o modo como vivemos são diferentes. É como o modo como empregamos a eletricidade. Às vezes a empregamos como uma luz e às vezes como um alto-falante. Os seres humanos têm sua natureza e os animais têm suas naturezas. Mas ainda que nossas maneiras de expressar nossas naturezas sejam diferentes, nossas naturezas têm a mesma base. Isto é a aplicação da verdade. Isto é, na realidade, do que fala Sekito. Não devemos ficar apegados às diferenças no uso porque estamos empregando a mesma natureza verdadeira, a natureza buda. Mas de acordo com a situação, empregamos a natureza buda de modos diferentes. Isto é como descobrir a natureza verdadeira dentro de nós mesmos na vida quotidiana.

Os versos seguintes são, “A vida comum encaixa-se no absoluto como uma caixa à sua tampa. O absoluto funciona junto com o relativo, como duas flechas se encontrando no meio do ar”. O relativo (ji) encaixa-se no absoluto (ri) como uma caixa e sua tampa. O relativo e o absoluto estão como duas flechas se encontrando. Como disse antes, ji significa as diversas coisas e eventos, incluindo as coisas que você tem em sua mente, as coisas nas quais está pensando. Ri é algo além do pensamento, além de nossa compreensão ou percepção. Novamente, relativo e absoluto são a mesma coisa, mas devemos compreendê-los de duas formas.

Onde há ji, há ri. Como uma caixa e sua tampa, eles se encaixam. Quando eu estou aqui, quer dizer que a natureza buda verdadeira está aqui. Neste momento sou a expressão da natureza buda. Eu não sou apenas eu. É mais que eu, mas estou expressando a natureza buda de minha própria maneira. Quando estou aqui quer dizer que todo o universo está aqui, tal como onde há uma lamparina a querosene, há combustível.

O modo como ri ajusta-se a ji é como duas flechas se encontrando em pleno vôo. Há uma velha história sobre isto. Na China, no período dos Estados em Guerra (430-221 aC), havia um mestre arqueiro famoso chamado Hiei (Ch. Feiwei). Kisho (Ch. Jichang), outro arqueiro muito bom, tornou-se ambicioso e desejava competir com Hiei. Assim esperou Hiei vir com seu arco e flecha. Vendo Kisho chegar, Hiei levantou seu arco e flecha. Ele tentou atingir Kisho primeiro, mas eles eram tão bons e rápidos que suas flechas se encontraram em pleno ar. S-s-s-t! Depois se tornaram como pai e filho.

Há alguma razão, por exemplo, para que eu esteja velho. Sem uma razão, eu não me teria tornado velho. E sem uma razão, eu não teria sido jovem. Por alguma razão, fiquei velho, então não posso me queixar. O que está por trás de eu ter-me tornado velho é o que está por trás de eu ter crescido como um menino bonito. [Rindo], Fui sustentado pelo mesmo pano de fundo, e serei sustentado por ele mesmo quando morra. Esta é a nossa compreensão.

Aceitar as coisas-como-é parece muito difícil, mas é muito fácil. Se você não acha fácil, deveria refletir porque é difícil. “Talvez”, você pode dizer, “seja pelo entendimento superficial, egocêntrico, que tenho de mim mesmo”. Então pode perguntar, “Porque tenho uma compreensão egocêntrica das coisas?” Mas uma compreensão egocêntrica das coisas também é necessária. Porque somos egocêntricos, trabalhamos duro. Sem uma compreensão egocêntrica, não podemos trabalhar. Sempre precisamos de alguma guloseima, e uma compreensão egocêntrica é um tipo de guloseima. Não é algo a ser rejeitado, mas algo que o ajuda. Você deveria ser grato por sua compreensão egocêntrica, que gera muitas perguntas. São apenas perguntas e não querem dizer muito. Você pode desfrutar de suas perguntas e respostas, pode brincar com elas, não precisa ser tão sério com elas. Esta é a compreensão do Caminho do Meio.

Podemos compreender o Caminho do Meio como ri, vacuidade, e ji, reidade. Ambas são necessárias. Devemos ter um modo egocêntrico de vida porque somos humanos e nosso destino é viver possivelmente por oitenta ou noventa anos. Teremos dificuldades que deveremos aceitar porque temos um modo egocêntrico de viver. Quando aceitamos dificuldades, é o próprio Caminho do Meio. Sem rejeitar seu modo de vida egocêntrico, você deve aceitá-lo - mas não fique grudado nele! Simplesmente desfrute sua vida humana enquanto viver. Isto é o Caminho do Meio, a compreensão de ri e ji. Quando há ri, há ji; quando há ji, há ri. Compreender a dificuldade deste modo, é desfrutar de sua vida sem rejeitar problemas ou sofrimento.

Notei uma coisa muito importante que não havia enfatizado antes: o sofrimento é uma coisa valiosa. Compreendi isto hoje quando estava conversando com alguém. Nossa prática poderia ser a prática do sofrimento. Como sofrermos, será a nossa prática. Ajuda muito. Acho que a maioria de vocês conhece o sofrimento quando sentem dor nas pernas quando sentam. E na vida diária vocês sofrem. O Bispo Yamada orientou alguns sesshins no Centro Zen. Ele enfatizou o unshu que Hakuin Zenji praticou por um longo tempo. Hakui teve tuberculose quando jovem e derrotou sua doença pela prática de unshu, que significa colocar ênfase na expiração –“m-m-m-mmm”. Como vocês dizem?

Aluno – Gemido?

Gemido? Quando vocês sofrem, dizem “m-m-m-mmm”.

Aluno – Suspiro?

Não, suspiro, não.

Aluno – Lamento?

Lamento, não. Mais forte, como um tigre com dor.

Aluno – Rosnado?

Rosnado? [Rindo] Ele dizia que sua respiração deveria ser como a respiração que você tem quando está sofrendo. Deveria colocar mais força em seu abdômen inferior e levar um tempo grande expirando. Vocês deveriam praticar “m-m-m-mmm” silenciosamente, de outra forma não será unshu. Quando vocês repetirem este unshu como se estivessem sofrendo algo físico ou mental, e dirigirem sua prática apenas para o sofrimento que vocês sentem, pode ser uma boa prática. Não é diferente de shikantaza.

Mas quando seu sofrimento está centrado no seu tórax e sua respiração é rasa, é agonia. Quando você sofre completamente, deve sofrer a partir de seu abdômen inferior. “M-m-m-mmm”. Você se sentirá bem quando fizer isto. É muito melhor do que nada dizer ou ficar deitado.

O Bispo Yamada teve uma dificuldade até recentemente. Agora ele está, talvez, “sobre as nuvens”. Mas quando ele estava em Los Angeles, sofreu muito. Naquela época eu não tinha muita experiência com doença e não podia entender. Eu não podia aceitar sua prática de unshu como uma pessoa doente podia. “M-m-m-mmm” . “O que é esta prática?” Pensava. Mas descobri porque ele fazia e descobri que ajuda bastante. Naturalmente ele compreendia o que era o sofrimento. Ninguém gosta de sofrer, mas nosso destino humano passa por ter sofrimento. Como sofremos é que é o ponto. Devemos saber como aceitar nosso sofrimento humano, mas não podemos ser completamente capturados por ele. Talvez essa fosse a prática do Bispo Yamada.

Para encontrar a unicidade de ri e ji, a unicidade da alegria e do sofrimento, a unicidade da alegria da iluminação dentro da dificuldade é a nossa prática. Isto é chamado o Caminho do Meio. Compreendem? Onde há sofrimento, há a alegria de sofrer, ou nirvana. Mesmo no nirvana você não pode se livrar do sofrimento. Dizemos que o nirvana é a completa extinção dos desejos, mas isto quer dizer ter uma compreensão completa e viver de acordo com ela. É zazen. Você se senta ereto. Você não está inclinado para o lado do nirvana ou inclinado para o lado do sofrimento. Você está aqui. Todos podem sentar e praticar o zazen.

Estou seguindo o poema de Sekito verso a verso, mas, na realidade, é preciso lê-lo direto do princípio ao fim. Não faz muito sentido quando você o comenta pedaço a pedaço. Sekito é muito rigoroso na conclusão, muito rigoroso. Você não pode escapar dele. Você não pode falar nada ou sentirá seu poderoso bastão. No seu tempo, o mundo do Zen era muito ruidoso, aí ele ficou muito aborrecido. “Calem-se!” foi o que disse na realidade. Desta forma eu não deveria falar tanto. Talvez eu já tenha me alongado demais. Desculpem-me.

17 agosto 2007

Manjusri passa o portal

Um dia, Manjusri estava do outro lado do portal quando Buda o chamou.

- Manjusri, Manjusri, porque você não entra?

- Nada vejo fora deste portal. Porque entraria?, respondeu Manjusri.

05 agosto 2007

Sandokai - 19º Comentário de Suzuki (1ª parte)

Cada coisa tem o seu próprio valor
E está relacionada com tudo o mais na função e na posição.
A vida comum encaixa-se no absoluto
Como uma caixa à sua tampa.
O absoluto funciona junto com o relativo,

Como duas flechas se encontrando no meio do ar.


Agora eu gostaria de falar como observamos as coisas e como compreendemos o valor das coisas. “Cada coisa tem o seu próprio valor e está relacionada com tudo o mais na função e na posição” – Bammotsu onozukara ko ari, masani yo to sho to wo iu beshi. Cada coisa (bammotsu) inclui os seres humanos, montanhas e rios, estrelas e planetas. Tudo tem sua função, virtude ou valor. Quando dizemos “valor”, habitualmente nos referimos a valor de troca. Mas aqui valor tem um significado mais amplo, para o qual empregamos a palavra ko. Ko não significa “função” ou “utilidade” no sentido habitual, mas, ao contrário, aplica-se mais a virtude ou mérito: alguém que vive uma vida meritória ou faz algo para a sociedade ou para a comunidade. Essa função terá virtude para nós. Mas quando dizemos “função”, você pode ainda se perguntar, “Função de quê?”

Aqui terei que usar alguns termos técnicos. Por exemplo, se você vê algo – [De repente o equipamento de som é ligado e Roshi ouve sua própria voz retornando dos alto-falantes]. Oh! [Risos]. Vocês ouvem minha voz. Vocês pensam que estão me ouvindo. O que vocês estão ouvindo pode ser minha voz, mas na realidade vocês estão ouvindo a função de alguma entidade universal chamada eletricidade que cobre o mundo todo - o universo todo. Esta é uma compreensão. Uma outra seria que vocês estão ouvindo a minha natureza bem como a natureza da eletricidade. Desta forma, quando vocês vêem ou ouvem algo, todo o universo está incluído. Quando compreendemos as coisas desta maneira, chamamos a compreensão de tai.

Tai quer dizer “corpo”. Mas é um corpo grande, ontológico que tudo inclui. E chamamos a natureza desse corpo de shō – não o sho nesses versos aqui, mas o shō que significa “a natureza básica de tudo”. Quando apreendemos isto que está além das palavras, chamamos esta compreensão de ri, ou verdade. Ri é algo além de nossa idéia de bom e mau, longo e curto, certo e errado.

No verso seguinte temos yo, que significa “utilidade” ou “uso”. Ko e yo podem parecer a mesma coisa, mas aqui – quando as empregamos como termos técnicos budistas – ko refere-se à função das coisas, ou ji, enquanto yo refere-se à função da verdade absoluta, ou ri. Nesses dois versos, Sekito está falando da unicidade de ko e yo. Ko e yo aplicam-se a cada ocasião e a todas as coisas. Assim, quando vocês encontram coisas, vocês deveriam saber que exatamente ali o ensinamento verdadeiro se revela. Vocês devem conhecer aquele lugar.

Às vezes empregamos ko e yo juntos. Quando dizemos koyo, compreendemos não apenas cada coisa tal como a vemos, mas também o que está por trás de cada coisa, que é ri. Devemos saber como usar as coisas. Saber como usar as coisas e saber o ensinamento, ou o modo como as coisas estão funcionando. Compreender as coisas significa compreender o que está por trás, o fundo. E compreender o valor das coisas é compreender como usá-las da maneira correta de acordo com o lugar e a natureza de cada coisa. Isto é ver as coisas-como-é. Habitualmente, mesmo quando vocês dizem, “Eu vejo as coisas-como-é”, vocês não vêem. Vocês vêem um lado da realidade e não o outro. Você não vê o fundo, que é ri. Vocês vêem apenas em termos de ji, o lado fenomênico de cada evento, e pensam que cada coisa existe apenas daquela maneira, mas não é assim. Todas as coisas estão mudando e estão relacionadas, uma à outra, e cada coisa tem seu fundo. Há uma razão pela qual todas as coisas estão aqui. Ver coisas-como-é quer dizer que ji e ri são um, que distinção e igualdade são um, e que a aplicação da verdade e o valor das coisas são um.
Por exemplo, pensamos que o universo existe apenas para os seres humanos. Hoje em dia nossas idéias tornaram-se mais amplas e nosso modo de compreender as coisas tornou-se mais livre, mas mesmo assim nossa compreensão é principalmente antropocêntrica, de modo que não apreciamos o verdadeiro valor verdadeiro das coisas. Vocês têm muitas perguntas para fazer-me, mas se vocês compreenderem este ponto claramente, não há muito que perguntar. A maior parte das questões e problemas é criada pelas idéias antropocêntricas, auto-referentes. “O que é morte e nascimento?” Esta já é uma idéia muito auto-centrada. Naturalmente, nascimento e morte é nossa virtude ou mérito. Morrer é nossa virtude, vir a esse mundo é também nossa virtude. Vemos como as coisas vão indo, como tudo está aparecendo e desaparecendo, tornando-se cada vez mais velho, ou ficando cada vez maior. Tudo existe deste modo. Então porque deveríamos tratar a nós mesmos de um modo especial? Quando dizemos “nascimento e morte”, quase sempre estamos nos referindo a nascimento e morte de seres humanos. Quando vocês compreenderem nascimento e morte como nascimento e morte de todas as coisas – plantas, animais e árvores – isto já não será mais um problema. Se for um problema, é um problema para todas as coisas, incluindo a nós mesmos. Um problema de todas as coisas não é mais um problema. Quase todos esses questionamentos vêm de uma compreensão estreita das coisas. É necessária uma compreensão mais ampla, mais clara. Vocês podem pensar que falar sobre esse tipo de coisa não os ajuda em nada. Um ser humano auto-referente pode ser difícil de ser ajudado!

22 julho 2007

Sandokai - 18º Comentário de Suzuki

A luz e a escuridão são um par,
Como um pé na frente e um pé atrás ao andar.


Continuamos falando sobre a realidade do ponto de vista da independência. Dependência e independência são, na realidade, dois lados de uma moeda.

As pessoas podem dizer que os japoneses são muito duros. Mas este é apenas um lado da personalidade japonesa. O outro lado é a suavidade. Em função de sua tradição budista, eles foram treinados dessa maneira por um longo período. O povo japonês é muito gentil.

Temos uma canção infantil que descreve um herói chamado Momotaro, o Menino Pêssego. Havia um velho casal que vivia próximo à beira de um rio. Um dia a velha mulher apanhou um pêssego da correnteza e trouxe-o para casa. Do pêssego saiu Momotaro. As crianças japonesas cantam uma canção sobre ele: “Ele era muito forte, mas muito bom e gentil”. Ele é a personalidade japonesa ideal. Como você o chama? Deve existir uma expressão para isto.

- Herói folclórico?

Sim, herói folclórico. Sem uma mente suave você não pode ser realmente forte. Se Momotaro não tivesse este lado de sua personalidade, se não fosse simpático, não poderia ser realmente forte. Uma pessoa que é forte apenas para si própria não é tão forte, mas uma pessoa forte que é muito bondosa apoiará as pessoas e pode ser realmente um herói folclórico. Quando temos tanto um lado suave quanto um lado forte, podemos ser fortes de um modo real.

Pode ser mais fácil lutar e ganhar do que agüentar sem chorar quando você é derrotado. Você deveria ser capaz de permitir que seu inimigo o derrote, ok? Isto é muito difícil. Mas, a menos que você suporte a amargura da derrota, você não poderá ser realmente forte. A prontidão para a derrota pode ser um sinal de força. Dizemos, “O salgueiro não pode ser quebrado pela neve”. O peso da neve pode partir os galhos de uma árvore forte. Mas com o salgueiro, embora a neve possa vergar ou torcer os galhos, mesmo uma neve tão pesada como a que tivemos ano passado não pode quebrá-los. O bambu também verga facilmente. Parece fraco, mas nenhuma neve pode parti-lo.

“Como um pé na frente e um pé atrás ao andar”. Escuridão e claridade – absoluto e relativo – constituem um par de opostos, como os pés da frente e de trás quando caminhamos. Esta é uma boa maneira de explicar a unicidade, ou a função real de um par de opostos. Expressa como aplicamos pares de opostos, como ilusão e iluminação, realidade e idéia, bom e mau, fraco e forte, na nossa prática diária. As pessoas que se sentem fortes podem achar difícil ser fracos. Pessoas que se sentem fracas podem nunca tentar ser fortes. Isto é bastante comum. Mas às vezes devemos ser fortes, às vezes, fracos. Se você permanece sempre fraco ou se você quer ser sempre forte, você não pode ser forte no sentido verdadeiro.

Quando você aprende algo, você deve ser capaz de ensinar às pessoas. Você deve dedicar o mesmo esforço para ensinar como para aprender. E, quando você quiser ensinar, deve ser humilde o bastante para aprender algo. Então você pode ensinar. Se você tentar ensinar apenas porque sabe alguma coisa, você não pode ensinar nada. Quando você estiver pronto para ser ensinado por alguém, então, se necessário, você pode ensinar as pessoas no verdadeiro sentido da palavra. Deste modo, aprender é ensinar e ensinar é aprender. Se você achar que é sempre um aluno, você não pode aprender nada. A razão para você aprender algo consiste em ensinar aos outros depois o que você aprendeu.

Não existe nenhum padrão moral padrão. Você descobre seu código moral quando você tenta ensinar os outros. Antes que o Japão perdesse a guerra e se rendesse incondicionalmente, o povo japonês pensava que dispunha de um ensinamento moral que era absolutamente correto. Eles acreditavam que não cometeriam nenhum erro se observassem estritamente aquele código. Mas aquele código, infelizmente, havia sido estabelecido no início da era Meiji (1868-1912). Depois de perder a guerra, perderam confiança na sua moralidade e não sabiam que tipo de moral deveriam observar. Não sabiam o que fazer. Mas, na realidade, não deveria ser tão difícil cada um encontrar seu código moral. Eu dizia às pessoas naquela época, “Vocês têm filhos. Vocês devem criá-los. Vocês naturalmente saberão o código moral para vocês mesmos”. Quando você pensa que o código moral é apenas para você mesmo, este é um entendimento unilateral. Um código moral é, sobretudo, ajudar os outros. O código moral que você descobre quando você quer ajudar e ser bondoso para os outros será igualmente bom para você.

Costuma-se dizer, “Ir para o leste cem milhas é ir para o oeste cem milhas”. Quando a lua está alta no céu, a lua estará funda na água. Mas habitualmente as pessoas observarão a lua acima da água e não verão a lua na água. Que a lua está funda, quer dizer que a lua está alta. A lua na água é independente e a lua acima da água é independente. Mas a lua acima da água é também a lua na água. Devemos compreender isto. Você deve ser forte quando você está forte. Você deve ser muito firme. Mas esta firmeza vem de sua bondade gentil. Quando você é bondoso, você deve simplesmente ser bondoso. Mas isto não quer dizer que você não seja forte.

As mulheres podem não ser tão fortes fisicamente quanto os homens. É em função disto que elas frequentemente são mais fortes que os homens. Na realidade, não sabemos quem é mais forte. Nossa força é absolutamente igual à de qualquer um quando temos nossa própria natureza completamente independente. Quando você fica comparando quem é mais forte, você ou eu, você não possui uma força real. Quando você é completamente independente, alguém com sua própria natureza, você é um poder absoluto em uma situação relativa. Quando diferentes tipos de pessoas competem entre si, não são tão fortes. Quando cada um torna-se completamente ele mesmo, passa a possuir poder absoluto. Compreende este ponto?

Deste modo, luz e escuridão, embora constituam um par de opostos, são iguais, como quando um pé num passo está à frente e o outro atrás. Quando você caminha, o passo adiante imediatamente se torna o passo atrás. O passo com seu pé direito é o seu passo a frente ou seu passo atrás? Qual é? Qual é claridade e qual é escuridão? É difícil dizer.

Quando você está caminhando, não há pé à frente e pé atrás. Se você parar de andar e pensar sobre o assunto, às vezes o pé direito pode estar adiante e o pé esquerdo, atrás. Mas quando você estiver caminhando, quando você estiver realmente praticando o caminho, não há luz nem escuridão, nenhum pé adiante ou pé atrás. Quando eu digo que você deve simplesmente sentar em zazen sem pensar, você pode imaginar que você não deveria ter nenhum pensamento. Você será aprisionado pela idéia de que o pé direito está à frente e o pé esquerdo está atrás. Então você não poderá mais andar. Você não faz nenhuma idéia de pé direito ou pé esquerdo quando você está realmente andando. Mas se você estiver auto-consciente de pé esquerdo ou pé direito, você não poderá andar ou correr.

Como disse, antes que você mastigue sua comida, há arroz, picles e sopa. Depois que você mastigou sua comida, não há mais arroz, picles, sopa. Depois que você misturar a comida na sua boca, ela será digerida na sua barriga e servirá à sua finalidade. Mesmo assim, devemos servir uma coisa depois da outra e a sobremesa virá no fim. Há uma ordem. Mas mesmo que exista uma ordem, você deve mastigar sua comida e misturá-la, ou a comida não atenderá sua finalidade. É preciso pensar sobre ela, ter uma receita, mas é também preciso mastigar e misturar tudo. Esta é uma boa interpretação da realidade e uma boa ilustração de como praticamos nosso caminho e o tipo de atividade que acontece nas nossas vidas quotidianas. A interpretação de Sekito da realidade, à luz da independência, está completa.

08 julho 2007

Sandokai - 16º Comentário de Deshimaru (cont.)

Um filho costumava acompanhar seu pai à pesca. Um dia, quando os dois estavam pescando, um peixe grande fisgou o anzol. Arrastado pela força que o peixe imprimia sobre o caniço de bambu, o pai caiu no mar. O filho pensou, “O que devo fazer? – devo ajudar meu pai... Ele certamente me diria que devo pescar até a minha morte e continuar seu karma...” Rápido, ele escondeu-se com o barco. Entrou num convento de eremitas escondido na montanha e virou monge. Mais tarde, tornado um grande Mestre, viu, uma noite, seu pai perto dele e lhe falando ao ouvido. “No momento exato que você não me retirou da água, meu karma mudou. Agora estou no paraíso e faço sampai para você”.

Observando apenas um lado, não podemos compreender, mas se considerarmos essa história à luz da fonte do espírito, ela torna-se exemplar.

No Japão antigo, alguns grandes monges faziam os transportes de dinheiro do templo de Eihei-ji. Um ladrão se pôs a segui-los, na esperança de apropriar de um grande butim. Uma noite, enquanto o tesoureiro dormia, ele entrou com passos de gato no quarto onde se encontravam o monge e o dinheiro. Abriu muito suavemente a porta e deu uma espiada no quarto antes de entrar. Ninguém. A claridade da lua inundava o quarto. Solitário, no centro da peça, um ramo de pinheiro. O ladrão, espantado, se disse, “Porque este quarto está vazio? O monge não saiu. Deveria estar aí. Eu o vi entrar no exato momento”. Recomeçou várias vezes suas artimanhas, mas, no quarto vazio, a lua iluminava sempre o ramo de pinheiro. Não ousava entrar. Decidiu-se finalmente e nada encontrou, dinheiro nenhum, apenas o ramo de pinheiro. Pensou que aquele monge possuísse um poder mágico que lhe permitia transformar-se em ramo de pinheiro, e que este poder era muito mais importante que o dinheiro porque lhe permitiria escapar da polícia. “Tenho que aprender este poder”. E, manhã alta, voltou ao quarto. Ali encontrou o monge. O ramo havia desaparecido. À sua pergunta “Onde você estava na noite passada?”, o monge respondeu, “Mas eu estava aqui! Fazia zazen, e não possuo nenhum poder mágico!” O ladrão lhe perguntou se podia lhe mostrar como fazer zazen e o monge lhe ensinou a postura.

Não devemos sofrer a influência das ações dos outros. É de nós mesmos que devemos extrair a essência.

“Saibamos apenas que quando escutamos um Mestre do Zen, não é preciso, ao escutá-lo, aduzir suas instruções às nossas concepções pessoais. Aquele que assim fizer não poderá apreender as instruções do Mestre. Quando consultamos um Mestre para nos informar sobre a lei, ele nos faz purificar o corpo e o espírito, acalmar a vista e o ouvido. Nada a fazer a não ser escutar as instruções do Mestre, sem aí misturar qualquer pensamento. O corpo e o espírito devem ser um e o mesmo que aquele do Mestre, como a água que vertemos de um vaso a outro. Apenas aquele que se tornar assim, poderá recolher o ensinamento do Mestre” (Dogen, Gakudo jin shu). Apenas tal discípulo será admitido no shiho.

O sutra do nirvana fala de um certo rei que só dizia sempre uma só palavra a seu aio: “Sandabbah” ou Arê em japonês: “Isto!”. Sandabbah para o sal, para as frutas, para a água, para selar o cavalo. Durante sua refeição o rei ordenava: “Sandabbah!” e o aio lhe trazia o sal. Sandabbah! O aio lhe apresentava as frutas. Sandabbah! Água fresca era vertida em seu copo. Sandabbah! E seu puro sangue era selado. A linguagem do rei e os tos de seu aio se encaixavam sempre perfeitamente. Sandabbah! Se o aio trouxesse o cavalo à mesa, grande erro! Ele compreendia por intuição. A educação Zen é a mesma coisa. O ponto final, shiho, significa a unidade do sangue do discípulo e do Mestre. Apenas o silêncio e, neste instante, tudo pode se transmitir.

02 julho 2007

Sandokai - 16º Comentário de Deshimaru

O absoluto funciona junto com o relativo,
Como duas flechas se encontrando no meio do ar.
Recebendo estas palavras, deveis
Compreender a grande realidade.
Não julgueis por quaisquer padrões.


É preciso tocar diretamente o espírito do Buda. Como tocá-lo? Nele entrando, diretamente! Pelo zazen! Buda fazia zazen sob a árvore Bo. Ele se despertou. Satori. Ele transmitiu a Mahakashyapa a essência e o método desse satori.

E, em seguida, esta transmissão foi efetuada de Mestre a discípulo praticando o zazen. Um discípulo que faz zazen tem em si a capacidade e a possibilidade do despertar.

Ao ler um sutra é preciso compreender seu sentido, não depender das palavras. I shin den shin!

Também é uma transmissão secreta do espírito do Mestre ao do discípulo: “a transmissão secreta do Zen”.

Apenas entre duas pessoas: o Mestre e o discípulo. Nenhuma outra pessoa pode intervir. Segredo absoluto, direto, inexplicável pelas palavras e pela linguagem. Transmissão simbolizada, confirmada pelo kesa, pela tigela ou por um certificado.

Um discípulo não poderá mudar esse segredo segundo suas próprias idéias. Ele deverá, à sua vez, retransmiti-lo à geração seguinte. Como a chama de um archote que passa de mão em mão. Tal é a essência do Buda que foi transmitida até mim. Esses versos são os versos maiores do Sandokai. Pode-se dizer que eles aí introduzem a conclusão.

Duas flechas se encontrando em pleno ar, uma metáfora chinesa. É a história de Kisho e Hiei, à qual também faz referência o Hokyo Zanmai. As pontas das flechas se encontram. A caixa e sua tampa se ajustam perfeitamente.

Prática e princípio se ajustam da mesma forma. Substância e ação, escuridão e luz, fonte e afluentes, unidade e diferenças, ku e shiki se encontram, coincidem e se penetram mutuamente. A caixa, a tampa, as duas são necessárias.

A utilidade e posição de cada termo são diferentes. Mas quando os dois se ajustam perfeitamente, o equilíbrio se realiza. Entre homem e mulher, por exemplo. O sexo do homem e o da mulher são opostos. Um penetra, o outro recebe. Mas para realizar sua utilidade, eles devem se encaixar, coincidir perfeitamente. E, por este ato, a utilidade do ser humano se realiza. É a unidade, não apenas um lado nem o outro, mas os dois em um. Do mesmo modo, além do pensamento e do não pensamento, Hishiryo.

Não devemos apegar-nos à superfície das palavras, mas compreender a fonte, o sentido profundo, a grande realidade.

Um Mestre Zen, encolerizado com seu discípulo, diz-lhe: “Deves sair! Não! Não pela porta! Não! Não pela janela!” Por onde? É um koan! Outro exemplo:

Mestre Obaku tornou-se célebre e sua velha mãe cega desejava encontrá-lo. Obaku viajava a maior parte do tempo. A mãe esperava seu filho perto de um barco, prestando alguns serviços às pessoas que por lá passavam, e emitindo os bilhetes do barco. Também fazia massagens nas pessoas cujos pés e tornozelos estavam doloridos. Esperava, assim, reencontrar seu filho um dia. Os pés de Obaku tinham cicatrizes características. Obaku chegou à margem do rio. A mãe, por intuição, agarrou o pé de seu filho e o reconheceu. “Diz-me o teu nome, penso que sou sua mãe... Tu és Mestre Obaku...” Ele passou sem responder, mas um passante advertiu a mãe de que aquele homem era mesmo o Mestre Obaku. Ela correu até ele, tentando alcançá-lo antes que o barco partisse. Mas o barco já havia começado sua travessia e mãe caiu na água ao tentar juntar-se a seu filho. Então Obaku disse, “A família que criou um filho que se tornou um verdadeiro monge, renascerá no céu”. A maioria das pessoas achava que Obaku não era um homem normal, mas um ser um pouco louco. Obaku, entretanto, tinha visto sua mãe subir ao céu naquele exato instante. A atitude de Obaku parece estranha, mas é preciso compreender a fonte de suas ações e de sua história. Ele ensinou como um grande mestre pode educar sua família no caminho da realização do satori. É o ponto escondido, obscuro... (continua).

24 junho 2007

Sandokai - 17º Comentário de Suzuki (cont.)

Anso wo motte o koto nakare – “mas não tome isto como escuridão”. Nakare significa “não”. Motte significa “com”. Anso significa “lado escuro” ou “perspectiva escura”. O caractere o significa “encontrar”, no sentido de tratar a pessoa que você encontra como amiga. Você encontra o modo como as nuvens encontram uma montanha. Aqui está a montanha Tassajara, há nuvens, e as nuvens oriundas do oceano encontrarão a montanha. Este tipo de relação é o. Você não deveria encontrar pessoas simplesmente com a compreensão da escuridão. Se você encontrar seu amigo com seus olhos fechados, ignorando quão velho ou elegante ele é, ignorando todas as suas características, você não encontrará seu amigo. É apenas uma compreensão unilateral, porque na escuridão há luz. Mesmo que a relação entre você e seu amigo seja muito íntima, ainda assim seu amigo é quem ele é, e você é você. Talvez a relação seja como a de marido e mulher. Marido é marido e mulher é mulher. Esta é uma relação real. Não encontre seu amigo sem a compreensão de luz ou dualidade. Uma relação estreita é escura porque, se sua relação é muito íntima, você é um com a outra pessoa. Mas ainda assim você é você e seu amigo é quem é.

O terceiro e o quarto versos são semelhantes ao primeiro e segundo. Eles dizem a mesma coisa que o primeiro e o segundo, mas de um modo diferente. “Dentro da escuridão há luz, mas não procure por esta luz”. Na escuridão, ainda que estejamos em uma relação íntima, há a dualidade de homem e mulher. Esta dualidade é a luz. Max você não deveria ver os outros com os olhos da luz apenas, porque o outro lado da luz é a escuridão. A escuridão e a luz são as duas faces de uma moeda.

Somos suscetíveis de ser dominados por idéias preconcebidas. Quando você tem uma má experiência com alguém, você pode pensar, “Oh, ele é uma má pessoa, sempre é mesquinho comigo”. Mas pode não ser assim. Você o está vendo com os olhos da luz apenas. Você deveria saber por que ele é mesquinho com você. Como a relação é tão estreita, tão íntima, ela é mais que uma relação entre duas pessoas. É apenas um. Então, quando ele está zangado, você estará zangado. Quando um está zangado, o outro ficará zangado. Você precisa entender o outro lado da luz que é a escuridão. Então, mesmo que você fique zangado, você não se sentirá tão mal. “Oh, ele está zangado comigo porque somos muito íntimos”. Quando você pensa que ele é mau, lhe é difícil mudar de idéia. Pode ser verdade que ele às vezes é mau, mas exatamente agora você não sabe se ele é bom ou mau. Você tem que ver.

Não nos devemos prender à idéia de escuridão ou luz. Não nos devemos prender à idéia de igualdade ou diferenciação. A maior parte das pessoas quando têm má vontade com alguém acha quase impossível mudar seu sentimento. Mas se somos budistas, devemos ser capazes de mudar nossas mentes de mau para bom e de bom para mau. Se você é capaz disto, “mau” não significa mau, e “bom” não mais significa bom. Mas ao mesmo tempo bom é bom e mau é mau. Compreende? Devemos entender a relação entre nós desta maneira. Eis um poema:
A mãe é a montanha azul
e as crianças são nuvens brancas.
Todo o dia estão juntas
e, no entanto, não sabem
quem é a mãe e quem são as crianças.
A montanha é a montanha e as nuvens brancas são nuvens brancas que flutuam em torno da montanha como crianças. Há a montanha azul e há as nuvens brancas, mas elas não sabem que existem nuvens brancas ou montanhas azuis. Ainda que não saibam, sabem muito bem – tão bem que não sabem.

Essa é a experiência que você terá na sua prática do zazen. Você ouvirá insetos e o córrego. Você está sentando, o córrego correndo, e você o ouve. Mesmo que você o ouça, você não tem nenhuma idéia de córrego e nenhuma idéia de zazen. Você está apenas na almofada negra. Você está ali simplesmente como uma montanha azul com nuvens brancas. Este tipo de relação é completamente esclarecido nesses quatro versos do Sandokai.

10 junho 2007

Dentro da luz, há escuridão


Sandokai - 17º Comentário de Suzuki

Dentro da luz, há escuridão,
Mas não tente entender essa escuridão.
Dentro da escuridão, há luz,
Mas não procure por essa luz.


Em primeiro lugar, falarei sobre os dois termos mei e an, “luz” e “escuridão”. A luz significa o mundo relativo, dualístico, das palavras, o mundo pensante, o mundo visível no qual vivemos. A escuridão refere-se ao absoluto, onde não há valor de troca ou valor materialista ou mesmo valor espiritual – o mundo que nossas palavras e nossa mente pensante não podem alcançar. Ao vivermos no reino da dualidade, devemos ter uma boa compreensão do absoluto, do qual podemos pensar como uma divindade. Mas no Budismo nós não temos qualquer idéia particular sobre uma divindade. O absoluto é o absoluto porque está além do nosso pensamento intelectual ou dualístico. Não podemos negar este mundo do absoluto. Muitas pessoas dizem que o Budismo é ateísmo porque não temos nenhuma idéia particular de Deus. Sabemos que há o absoluto, mas sabemos que está além dos limites de nossa mente pensante, e assim não temos muito que dizer sobre isto. É o que queremos dizer com an, “escuridão”.

Meichu ni attate an ari – “Dentro da luz há escuridão”. Isto é uma tradução literal. Mas a tradução literal não faz muito sentido. Assim devemos compreender o significado de ari, “há”. Há dois caracteres para “há” em japonês: ari e zai. Quando dizemos que há algo sobre a mesa, na Terra ou en Tassajara – algo sobre ou em alguma coisa- usamos “zai”, e quando dizemos, “Tenho duas mãos, usamos “ari”. Na realidade, dizemos, “Há duas mãos”, ou, “Há duas mãos em você”. Parte do caractere para “ari”, significa “carne” ou “pele”. Isto mostra uma relação muito estreita entre luz e escuridão, como a relação entre minha pele e eu. A frase, “Dentro da luz há escuridão”, soa mais dualística. “Tenho minha pele”, você pode dizer, ou, “Tenho minha mão”. Mas sua mão ou sua pele são partes de você, desta forma, na realidade, não é dualístico. Pele é você mesmo. Suas mãos são suas mãos. Dizemos, “Tenho duas mãos”. Mas suas mãos podem achar graça quando você diz isto. “Oh! Somos parte de você e ainda assim você diz que tem duas mãos. O que você quer dizer com isso? Quer dizer que você tem mais duas mãos além de nós?” Se possível, acho que deveria haver uma outra maneira de expressar isto em português.

Nesses versos ari quer dizer que há uma relação muito estreita entre luz e escuridão. E, na realidade, a própria escuridão é luz. A escuridão ou a claridade está dentro de sua mente. Na sua mente, você tem algum padrão ou medida de quão claro ou escuro está esta sala. Se estiver estranhamente clara, você pode dizer que a sala está clara; se estiver estranhamente escura, pode dizer que está escura. Mas você pode dizer, “Esta sala está clara” e, ao mesmo tempo, uma outra pessoa dizer, “Esta sala está muito escura”. Alguém que chega de São Francisco à noite pode dizer, “Tassajara é muito escura”. Mas alguém que chega aqui de uma caverna pode dizer, “Tassajara é muito clara, como uma grande cidade”. A idéia de luz ou escuridão está dentro de nós mesmos. Porque temos algum padrão, dizemos luz ou escuridão, mas realmente luz é escuridão e escuridão é luz.

Mesmo que digamos “escuridão”, isto não significa que não haja nada ali. Podemos ver muitas coisas quando há luz, como brancos e japoneses, homens e mulheres, pedras e árvores. Essas coisas aparecem na luz. Quando dizemos “escuridão” ou “mundo do absoluto”, que está além de nosso pensamento, você pode pensar que seja um mundo bastante diferente do nosso mundo humano, mas isto também é um erro. Se você compreende escuridão desta maneira, não é a escuridão de que estamos tratando aqui.

Alguns de vocês estão preparando comida para o casamento de Ed e Meg. Você pode arrumar as comidas separadamente, colocando-as em pratos diferentes. Isto é sopa, isto é salada, isto é sobremesa. É a luz. Mas quando você comer, as várias comidas se misturarão na sua barriga. Aí não há nenhuma sopa, nenhum pão, nenhuma sobremesa. Naquele momento todos funcionam juntos. Quando os vários itens estão nos pratos, eles não estão funcionando, desta forma não são realmente alimentos, é luz. Quando estão na sua barriga, é escuridão. Mas mesmo na escuridão, ainda há alface e sopa e tudo o mais. A comida é a mesma, apenas quando troca a sua forma começa a funcionar. As coisas acontecem deste jeito na escuridão profunda. Você se sente bem na luz, você sente como se tivesse um prato especial à sua frente, mas a comida ainda não está atingindo sua finalidade.

Quando você não sabe o que está fazendo, na realidade está agindo completamente, com uma mente cheia. Quando você está pensando, você ainda não está funcionando. Quando você começa a funcionar, tanto o lado escuro quanto o lado claro estão presentes. Quando você está realmente praticando o caminho budista, há um lado escuro e um lado claro, e a relação entre a luz e a escuridão é essa relação ari, como a relação entre sua pele e seu corpo. Você não pode realmente dizer o que é pele e o que é corpo. (continua)

03 junho 2007

Sandokai - 15º Comentário de Deshimaru

Cada existência tem sua utilidade,
Use-a qualquer que seja sua posição.
Fenômeno e essência encaixam-se perfeitamente.

A substância é a luz, a ação, a escuridão. A fonte do espírito do Buda transforma-se em ação. A substância transforma-se em ação, como a elevada montanha torna-se oceano profundo.
A fonte é uma, mas os rios são numerosos: águas claras, águas barrentas, águas calmas, águas agitadas.... ku soku ze shiki...
Ku é a fonte, mas os fenômenos aparecem aos montes, e ku torna-se shiki.
A fonte do espírito de Bodhidarma é um, mas, para seus discípulos, ela se fez pele, músculos, ossos e medula...

28 maio 2007

Shoji soku nehan

Perguntaram ao mestre Luhan Shuren:
- O que é o nirvana?
O mestre respondeu:
- O samsara.
- Mas o que é o samsara?
O mestre disse:
- O que é que eu acabo de te dizer?

27 maio 2007

Sandokai - 16º Comentário de Suzuki (cont.)

Diz Dogen Zenji, “Se não há rio, não há barco”. Mesmo que exista um barco, não será um barco. Um barco pode tornar-se um barco porque há um rio. Habitualmente, porque as pessoas compreendem as coisas de apenas um modo, elas se tornam apegadas ao mundo objetivo ou a algo que elas vêem. Sua compreensão é de que algo existe independente delas. Esta é nossa maneira habitual de compreensão. “Aqui há algo muito doce para comer”. Mas bolo se torna bolo porque queremos comê-lo. Por isso fazemos um bolo. Não há bolo sem nós. Quando compreendemos as coisas desta maneira, estamos vendo bolo, mas não estamos vendo bolo. Isto é cumprir os preceitos.

Talvez você mate algum bicho ou inseto. Mas quando você pensa, “Há muitas lacraias aqui e elas são insetos daninhos, tenho que matar esta aqui”, você está compreendendo as coisa apenas de uma maneira dualística. Na realidade, as lacraias e os seres humanos são um. Não são diferentes. É impossível matar uma lacraia. Mesmo que você pense a matamos, não a matamos. Ainda que você esmague a lacraia, ela continua viva. Aquela forma momentânea pode esvanecer, mas enquanto o mundo inteiro, incluindo nós mesmos, existir, não podemos matar uma lacraia. Quando atingimos esta compreensão, podemos cumprir completamente nossos preceitos.

Mas mesmo assim, não devemos matar qualquer coisa sem razão nem matarmos inventando uma razão de conveniência. “Devo matar lacraias porque elas comem vegetais”. “Nada há de errado em matar animais, por isso mato lacraias”. Não é nosso caminho matar animais com desculpas de raciocínio. Na realidade, quando você mata um animal, você não se sente tão bem. Isto também está incluído no nosso entendimento: “Tenho que matar ainda que não me sinta bem com isto. Ainda tenho que matar um animal mesmo que não seja possível”. As coisas andam dessa maneira no grande mundo.

Não é maneira de guardar os preceitos apegar-se a alguma idéia de matar ou não matar, ou a alguma razão para matar ou não matar. O modo correto de guardar os preceitos é ter uma compreensão completa da realidade. É como você não mata. Compreendem? Como você compreende minha palestra, como você pratica o zazen, é como você não mata. Em outras palavras, você não deve viver no mundo da dualidade apenas. Você pode observar o mundo do ponto de vista dualístico e do ponto de vista do absoluto. “Não é bom matar” é o ponto de vista dualístico. “Ainda que você pense que matou, você não matou” é o ponto de vista absoluto. Mesmo que você viole seus preceitos, se depois de fazê-lo você se arrepende, se você diz “Desculpe-me” para a lacraia, é o modo de Buda. Deste modo sua prática continuará. Você pode pensar que se há preceitos você deveria observá-los literalmente ou você não pode ser budista. Mas se você se sente bem apenas porque você observa algum preceito, isto tampouco é caminho. Desculparmo-nos quando matamos um animal está incluído nos nossos preceitos. Todos estão envolvidos neste tipo de atividade. Mas o modo como fazemos e o sentimento que temos pode não ser o mesmo para todos. Uma pessoa não tem nenhuma idéia de preceitos ou consecução. Uma outra está tentando sentir-se bem através da atividade religiosa ou pela observação dos preceitos. Isto não é o caminho budista.

O caminho budista, em uma palavra, é jihi, compaixão. Jihi quer dizer encorajar as pessoas quando elas estão se sentindo positivas e também ajudá-las a se livrarem de seu sofrimento. É amor verdadeiro. Não é apenas dando algo ou recebendo algo ou observando os preceitos que nós praticamos nosso caminho. Praticamos nosso caminho com as coisas como elas ocorrem naturalmente, indo com as pessoas, sofrendo com elas, ajudando a aliviar seu sofrimento e encorajando-as a prosseguir. É assim que observamos os preceitos. Vemos algo, mas não vemos algo. Sempre sentimos a unicidade dos mundos objetivo e subjetivo, a unicidade do olho e da forma, a unicidade da língua e do paladar. Deste modo não precisamos nos ligar a algo de uma maneira especial, e não temos que nos sentir especialmente bons em função de nossa prática budista. Quando praticamos desta maneira, somos independentes. É disto que Sekito está falando.

“Mas todas as existências, como as folhas da árvore, são alimentadas pela raiz”. Olhos, nariz, língua, ouvidos, vista, cheiro, gosto e audição, todos são dharmas, e cada dharma está enraizado no absoluto que é a natureza buda. Quando observarmos muitas coisas, devemos olhar além de sua aparência e saber como cada coisa existe. Por causa da raiz, existimos, por causa da natureza buda absoluta, existimos. Ao compreendermos as coisas desta maneira, temos a unicidade.
No Bonmo-kyo, uma escritura importante sobre os preceitos, está dito, “Ver é não ver e não ver é ver”. Comer carne é não comer carne, não comer carne é comer carne. Você compreende os preceitos de uma maneira apenas. Você observa os preceitos ao não comer carne. Mas não comer carne é comer carne. Na realidade, você está comendo carne. Entende? É assim que observamos os preceitos. “Não cometa atos não castos”. Ver uma mulher é não ver uma mulher. Não ver uma mulher é ver uma mulher.

Havia dois monges viajando juntos que chegaram a um rio onde não havia ponte para cruzá-lo. Quando estavam de pé à margem, apareceu uma bela mulher. Um deles atravessou o rio com ela às suas costas. Mais tarde, o outro monge ficou furioso. “Você é um monge! Violou o preceito de não tocar uma mulher. Porque fez isso?” O monge que ajudou a mulher replicou, “Você ainda está carregando a mulher. Eu já a esqueci. Você é quem está violando os preceitos”. Talvez não fosse completamente correto para um monge carregar uma mulher. Mesmo assim, como todos os seres humanos são amigos, devemos ajudá-los mesmo que isto signifique violar um preceito budista. Pensar sobre os preceitos de uma maneira limitada é, na realidade, violar os preceitos. Assim, ver a mulher é não ver a mulher. Quando o monge atravessou o rio com ela nas suas costas, na realidade não a estava ajudando. Compreende? Não ajudá-la, era ajudá-la no sentido verdadeiro.

Quando você se envolve com o sentido dualístico dos preceitos – homem e mulher, monge e leigo – isto é violar os preceitos e é uma compreensão pobre do ensinamento de Buda. Sem qualquer idéia de alcance, sem qualquer idéia de uma prática significativa, simplesmente sentar é o nosso caminho. Nosso zazen é estar completamente envolvido na meditação sentada. E é como observamos nossos preceitos. Às vezes estaremos aborrecidos, às vezes sorriremos. Às vezes estaremos enlouquecidos com nossos amigos, às vezes lhes dirigiremos uma palavra gentil. Mas, na realidade, o que estaremos fazendo é apenas observando nosso caminho. Não posso explicar isto tão bem, mas acho que vocês entendem o que quero dizer.

14 maio 2007

Sandokai - 16º Comentário de Suzuki

Para os olhos, há a cor,
Os ouvidos percebem os sons, o nariz, os odores,
A língua diferencia o salgado do doce.
Mas todas as existências, como as folhas da árvore,
São alimentadas pela raiz.

Na minha última palestra, expliquei o sentido da independência de tudo. Embora as coisas sejam interdependentes em relação umas às outras, ao mesmo tempo, cada ser é independente. Quando cada ser inclui o mundo inteiro, cada ser é realmente independente.

Sekito falava sobre a natureza da realidade em um tempo em que a maioria das pessoas, esquecendo tudo sobre este ponto, julgava qual escola do Zen estava certa ou errada. Foi por isto que Sekito escreveu esse poema. Ela falava da realidade a partir do ponto de vista da independência. A escola do Sul é independente e a escola do Norte é independente, e não há nenhuma razão para que devêssemos compará-las para decidir qual é a correta. Ambas as escolas expressam a totalidade do Budismo à sua própria maneira – da mesma maneira que a escola Rinzai tem sua própria abordagem da realidade e a escola Soto tem sua própria abordagem. Sekito Zenji salienta isto. Embora ele se refira à disputa entre as escolas do Norte e do Sul, ele fala ao mesmo tempo sobre a natureza da realidade e sobre o que é o ensinamento budista em seu sentido verdadeiro.

Agora quero explicar esses versos que descrevem a realidade do ponto de vista da independência. “Olho e visão, ouvido e som, nariz e cheiro, língua e paladar”. Parece que Sekito fala dualisticamente sobre a dependência dos olhos em seus objetos. Mas quando você vê algo, você vê em seu sentido verdadeiro de que não há nada para ser visto nem ninguém para ver. Apenas quando você analisa é que há alguém vendo algo e algo que é visto. É uma atividade que pode ser compreendida de duas maneiras. Eu vejo algo, mas na realidade não há ninguém vendo e nada para ser visto. Ambas são verdadeiras. Aqui Sekito fala sobre a unicidade do olho e da forma. È como os budistas observam as coisas. Compreendemos as coisas de um modo dualístico, mas não esquecemos que nossa compreensão é dualística. Eu vejo. Ou alguém ou algo é visto por alguém. São interpretações de sujeito e objeto que nossa mente pensante produz. Sujeito e objeto são um, mas também são dois.

Sekito diz que para os olhos, há forma. Mas ao mesmo tempo não há olhos nem forma. Quando você diz “olhos”, olhos incluem a forma. Quando você diz “forma”, forma inclui os olhos. Se não há forma e nada para ser visto, olhos não são mais olhos. Olhos tornam-se olhos porque há algo para ser visto. O mesmo é verdade para ouvidos, nariz e língua.

28 abril 2007

Sandokai - 14º Comentário de Deshimaru

Luz e escuridão
Geram uma oposição,
Mas dependem uma da outra como
O passo da perna direita depende do passo da perna esquerda.

Quando a luz enfrenta a escuridão, toda a escuridão torna-se luz, não há mais escuridão.
A escuridão ao enfrentar a luz, a luz escurece, não há mais luz.
Os afluentes barrentos fluem para o oceano e a água ficará suja. O grande rio amarelo se derrama no mar da China que fica da mesma cor. Onde se encontra a água pura do mar da China?
Viver, nós olhamos apenas nossa vida.
Morrer, nós contemplamos apenas a morte.
A vida difere da morte. A lenha transforma-se em cinzas. Quando a lenha vira cinzas, as cinzas não podem transformar-se em lenha. Apesar disto, não se deve afirmar que aquilo são cinzas depois e lenha antes. É preciso perceber claramente que, ainda que a lenha se situe na etapa dármica de lenha, e ainda que este estado traga em si um antes e um depois, a lenha está além do antes e do depois. Do mesmo modo, as cinzas são cinzas, e têm um antes e um depois.
A lenha não pode retornar ao estado de lenha depois que o fogo a reduziu a cinzas. Do mesmo modo, o homem não pode regressar à terra depois de morto.
À luz desta observação, o budismo não ensina de maneira alguma que morte torna-se vida. Ele fala do não-nascido e da não-extinção. A vida é uma etapa, a morte é uma etapa, como o são também a primavera e o inverno: não se diz que o inverno torna-se primavera ou que a primavera torna-se verão (Dogen, Genjo koan).
No ato de caminhar, o primeiro passo nunca se torna o segundo passo. O primeiro passo é apenas o primeiro passo. O passo da direita não pode ser o passo da esquerda e vice-versa. A direita não pode tornar-se esquerda. Tais são as relações entre a luz e a escuridão. Na noite, tudo é escuro, as existências estão presentes, mas não se pode vê-las. Não há perna esquerda. Durante o dia, tudo é claro, tudo é aparente, não há perna direita. Na escuridão, apenas o escuro existe. Tudo está escondido. Tudo existe. Nada pode ser visto.