... transmitir a mente-de-Buda
Quando Dogen fala de "transmissão", não creio que se trate de "shiho", tal como conhecemos hoje em dia, isto é, da transmissão oficial em papel - que, aliás, não existia naquela época. A transmissão aqui tratada é a transmissão da mente de Buda. É graças aos nove anos durante os quais Bodhidharma esteve sentado em frente à parede de sua gruta, que nós hoje praticamos à frente de uma parede. Eu não sei se Buda estava ou não sentado de frente para a árvore de Bodhi (ele é representado assim em desenhos antigos), mas Bodhidharma, seguramente sentava-se de frente para uma parede. E assim nós, praticantes do zen soto, fazemos a mesma coisa, diferentemente de outras escolas onde se sentam uns de frente aos outros. Nada mudou. É exatamente a mesma prática. E é isso que importa.
Se Bodhidharma não houvesse existido, o zen, tal como o conhecemos hoje, não existiria. À nossa prática, não se chega por alguma coisa. Isso é particularmente difícil de aceitar pela maioria das pessoas e frequentemente é por isso que muitos a deixam: descobrem que realmente não há nada, que é outra coisa que se passa. No zen de Bodhidharma, não há graus, não há etapas a vencer. É verdadeiramente o confronto ou encontro com suas vísceras - vísceras dos seres humanos. Os primeiros anos são fáceis. Cinco anos, fácil; dez anos, um pouco mais difícil; quinze, vinte anos, não é nada fácil. É preciso ficar ainda mais vigilante do que no começo, pois o caminho torna-se cada vez mais perigoso. Como o velho salmão que depois de haver descido a correnteza, vai regressar e subir o rio para por seus ovos e morrer. A descida não foi tão difícil, mas a subida torna-se cada vez mais difícil - há cada vez menos água..., cada vez mais pedras... E, além disso, há ursos à beira do rio prontos para abocanhá-lo. Podemos perceber esses ursos por toda a parte em nossas vidas: homens, celibatários, mulheres, solitárias, honrarias, posições a conquistar... Muitos salmões não conseguem chegar ao alto, nem chegam mesmo a colocar a ponta de seu nariz no ponto de partida, não reencontram a fonte e perdem a vida. A mesma coisa vale para os praticantes: trata-se da mais elevada aspiração espiritual e, se ela é fácil, não é autêntica.
Ainda que, nas imagens que representam Bodhidharma na sua caverna, ele é visto sentado defronte a uma parede, isto nada mais é do que uma imagem. Ainda que nossa prática comece e termine com zazen, ela não se limita apenas ao zazen. É como apertar constantemente o mesmo ponto de acupuntura. Todos os dias. E no fim desse pequeno ponto se encontra o universo todo, o satori, a verdade cósmica. O zen que Bodhidharma ensinou consiste simplesmente em harmonizarmo-nos com a vida cósmica, com a natureza, com o homem, os animais, natural e inconscientemente. O nome Bodhidharma foi bem escolhido por seu mestre Hannyatara. Bodhi quer dizer "satori" e Dharma, "ordem cósmica". Cada grande mestre, seja Cristo, Sócrates ou Bodhidharma, procurou este verdadeiro Dharma: ho.
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