Não é um princípio anterior aos conhecimentos e percepções?
O despertar ao qual Mestre Dogen aqui se refere situa-se além dos ruídos e imagens do mundo. É anterior aos conhecimentos e às análises. Não podemos apreendê-lo pelos poderes comuns. Cada um tem seus próprios ouvidos e ouve a mesma coisa de maneira diferente. O mesmo vale para os olhos. Mas tudo isso permanece sempre no mundo do ordinário, do comum. Não escutamos com os ouvidos da fé.
Pois penso que, afinal, tudo isso é uma questão de fé. Não a fé cristã ou budista, mas aquela vem de antes das religiões, antes que tenham sido ordenados monges, monjas e boddhisattvas. Seguramente existem todos os tipos de fé: a fé mona, um pouco de fé, mas não muito; a fé no mestre, mas não na prática ou, inversamente, a fé na prática, mas não no mestre; e também a fé no ensinamento budista, a fé que vem da dúvida e, depois, aquela que vem do cosmo (essa ideia de cosmo me faz pensar no Buda quando se despertou ao ver a estrela do Norte, sua fé veio do exterior, não foi uma coisa fabricada por ele, mas também não era uma questão de Deus).
Li num jornal um desses assuntos variados que achei interessante. Um marinheiro está num cargueiro que atravessa o Pacífico e, um dia ao longo da viagem, ele cai ao mar sem que ninguém tenha visto, nem a tripulação, nem o comandante. Durante dez horas ninguém notou. Dez horas mais tarde, dão-se conta de seu desaparecimento. Alguns querem voltar, outros não. Parece impossível que o marinheiro ainda esteja vivo. Finalmente, o comandante decide dar a meia-volta. Dez horas se somam às dez horas, e eles encontram o marinheiro boiando na água, quase adormecido, mas são e salvo. Quando entrevistaram aquele homem, ele explicou que nada havia feito senão entregar-se totalmente ao momento presente. Como devemos fazer no zazen. Automaticamente, naturalmente, inconscientemente. Dessa forma, o marinheiro pode boiar, pode ser completamente um com a água do oceano.
A fé não depende da prática do zazen. Apesar disso, ela é o poder essencial, um "princípio", para empregar a linguagem de Dogen, "um princípio anterior aos conhecimentos e percepções".
Em zazen, somos como aquele marinheiro que flutuava na água, Ele está morto, e é por isso que vive. Nós também: não nos movemos, não pensamos, nossos sentidos nada fazem. E, além disso, estamos vestidos de preto..., perfeitos para nosso caixão! Zazen, é entrarmos no nosso caixão. É olharmos o mundo do ponto de vista do caixão(1). E no nosso hara. Senão, não podemos boiar. Kikai tanden, oceano da energia.
1. Esta imagem é de Kodo Sawaki.
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