Tivestes a sorte única de tomar a forma humana, não percais vosso tempo. Trazei vossa contribuição à obra essencial do Caminho do Buda. Quem teria um vão prazer à chama jorrada do sílex?
É difícil nascer sob a forma humana, mas cada um de nós mesmos nasceu humano. É difícil ouvir a verdade, mas nós a ouvimos. É difícil praticar o Caminho correto, mas no dojo nós o praticamos. Então todos os que praticamos o zazen (ou quase todos) sabemos agora como não perder nosso tempo, como não perder o momento presente. Entretanto, se temos a tendência de perder nosso tempo na vida quotidiana, não é muito difícil que continuemos a perdê-lo no dojo... Se passamos o tempo todo, por exemplo, a assistir partidas de futebol ou corridas de carros na televisão, a jogar cartas, ir sempre ao cinema, a discutir sempre, a tagarelar sobre não importa o que e não importa quando, como não fazer a mesma coisa no dojo? Como não chegar ali e estacionar nosso corpo, como estacionamos um automóvel no estacionamento, e sair para algum outro lugar tagarelando com nós mesmos ou ruidosamente?
No começo da prática, aprendemos rapidamente o que é o Caminho no dojo. Depois, natural e inconscientemente, chegamos ao Caminho fora do dojo. Mas, em seguida, se não prestarmos atenção, não conseguiremos trazê-lo de volta para o dojo, pois nos deixaremos ser pegos nas armadilhas por todos os fenômenos do mundo social. E, mesmo após vinte anos de prática, não sabemos mais o que fazemos e porque lá estamos. Então é preciso prestar atenção sempre, quer estejamos praticando há um mês, quer sejamos um monge de cem anos.
Um leigo queria obter uma caligrafia do célebre monge Ikkyu. Ele então escreveu em kanji: "Atenção!" O homem não ficou nada impressionado: "Isto não é muito profundo... Vc não teria uma outra coisa para escrever?" Ikkyu escreveu então: "Atenção. Atenção!" O homem nada compreendeu, ele queria qualquer coisa ainda melhor, certamente ele estava pronto para aplicar-lhe um golpe... Então Ikkyu escreveu: "Atenção. Atenção. Atenção!"
"Atenção" em japonês é composto por dois kanji, um quer dizer presente, o outro, mente. Mente presente. É isto a urgência. É isto não perder seu tempo.
Não basta que venhamos simplesmente nos sentar em zazen. É preciso estar aqui e agora. É preciso que o momento presente esteja arrematado, completo. Como o ruído de um estalar de dedos. Tlec! O tempo torna-se eternidade, não nascido, não morrido. Isto é o satori, natural, automatica e inconscientemente.
"Não percais vosso tempo", é também: não pratiqueis um zazen confortável, não procureis apaziguar o que quer que seja, não procureis acalmar vossa mente, vossos problemas psicológicos. Os iniciantes não têm esse tipo de preocupação, mas em seguida nos metemos a buscar o conforto da postura e da prática. Procuramos uma espiritualidade confortável. Isso é uma perda total de tempo. Não é preciso parar. Quando paramos, eis que adormecemos... e acabamos por recuar, ainda que pratiquemos zazen todos os dias durante cem anos.
Um dia, um praticante veio me dizer que o zazen era bom para "apaziguar seu karma". Isto é falso. Para começar, zazen não é bom para nada. Pensar que o zazen pode servir para alguma coisa é um enorme absurdo e é não compreender nada do que fazemos. Além disso, zazen não apazigua absolutamente nada - além do mais não apaziguamos o karma, nós o cortamos (ainda mais, pois não é o zazen que o corta). Aquele que pratica não se encontra de maneira alguma apaziguado, ao contrário, ele se encontra assediado pela prática, pelo Caminho, mas comparece ao dojo. Colocamo-nos em questão, colocamos nossas ideias em questão, vemos que nossos pensamentos não são tão profundos, vemos nossas ilusões, nossos erros, mas não há apaziguamento. E mesmo assim, comparecemos ao dojo.
Todos, ou quase todos, nos mostramos preocupados como grilos, como cigarras. Tem uma iamgem retirada do Eiheikoroku que quer dizer: tagarelar, perder seu tempo, correndo atrás de dinheiro, do trabalho, por exemplo, choramingando porque não ganhamos tanto, ou procurando constantemente distrações para passar o tempo, cinema, televisão, praia, palavras cruzadas, jogo, ping-pong, caça etc. É o pior das coisas para quem pratica, para quem carrega um kesa ou um rakusu. Se a maior parte dos homens e mulheres, durante toda a sua vida até o túmulo, passam seu tempo a se interessar de coisas fúteis, pior para eles, é assim... Mas para aquele que pratica o Caminho, que pediu e recebeu a ordenação, não há nada mais triste do que se aproximar do fim de sua sua vida sem haver podido esclarecer sua mente, limpá-la.
Está dito no Shukke Kudoku de Mestre Dogen que aqueles que vêm da região sul do monte Sumeru, isto é, nós, temos sorte por quatro razões:
1. Eles podem praticar o Caminho.
2. Eles podem ouvir o ensinamento de Buda.
3. Eles podem tornar-se monges, monjas.
4. Ele podem obter o satori.
Muitos não compreendem o sentido dessas palavras e pensam que devem praticar como loucos, por toda a parte e por todo o tempo - genmai no dojo, genmai com seus cônjuges em casa, nada de álcool, nada de sexo, nada de cigarros, nada de festas, mostrar cara feia... Mas não é nada disso. Não se trata de galopar sem relaxar atrás do que quer que seja como de uma cenoura.
Um dos discípulos do samurai Miyamoto Musashi queria de todas as maneiras aprender a manejar a espada. Musashi lhe ensina durante três anos a cortar lenha. O discípulo furioso se põe um dia a reclamar. "De acordo, se você não quer mais cortar lenha, você pode agora caminhar pela borda do tatami. Ande, faça!" E, durante um ano, da manhã à tarde, aquele discipulo caminho pela borda do tatami. Sempre furioso, acaba por queixar com Musashi que lhe diz: "Venha ver, venha comigo". Musashi lhe conduz ao alto de uma falésia. Em cima do precipício um tronco de árvore está caído de mod a formar uma ponte entre as duas ,argens da falésia. O samurai diz a seu discípulo: Ande! Atravesse!" O discípulo tem medo. Um único pequeno erro e ele cairá no abismo. Mas eis que, nesse exato momento, um cego passa diante dele com um bastão e, batendo com sua bengala, atravessa o precipício caminhando sobre o tronco da árvore.
A prática não é a obtenção de qualquer coisa ou o fato de ir a qualquer parte. A prática é o momento presente. E é preciso saber dele nos servirmos. Não é apenas uma ideia, é o vivido.
O mestre pergunta ao discípulo:
"Então, de onde vens agora?
- Estava em Seto, responde o monge. [Seto era uma aldeia siituada muito longe].
- Certamente gastaste bastante as sandálias de palha..."
O monge permanece silencioso e o mestre constata que ele não compreende a prática. Diz-lhe, "Lamento essas sandálias. Elas foram usadas em vão".
2 comentários:
Caríssimo, parece-me que no 7o parágrafo alguma coisa se perdeu. Gasshô
Dei uma conferida e não está faltando nada. Mas dei uma mexida leve na tradução e acho que melhorou.
Em gasshô
T.
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