20 agosto 2011

Fukanzazengi - 38º Comentário de Coupey


Com a força do zazen, se torna possível transcender a diferença entre “comum” e “sagrado” e podemos ganhar a habilidade de morrer enquanto fazendo zazen ou enquanto de pé.

Dogen aqui evoca os mestres do passado, aqueles que servem como exemplo, aqueles que transcenderam o comum e o sagrado. É o caso de Bodhidharma quando respondeu ao imperador Wu que lhe perguntara a propósito de sua prática e de seu satori: "Vazio insondável, nenhuma santidade". Para ser mais exato, Boshidharma de fato respondeu "Kakunen mushô". Kakunen quer dizer "céu infinito, aberto", e mushô, "nenhuma santidade, nenhum delírio". Nennhuma santidade. Apenas a imensidão do céu. Mas para descobri-la, é preciso abrir, retirar o teto.

Então, nos diz Dogen, graças ao poder da prática do zazen, não só os antigos monges e praticantes transcenderam o comum e o sagrado, mas morreram de morte natural fazendo zazen ou kinhin. Mahakashyapa, por exemplo, o primeiro discípulo de Buda, morreu no monte Kukku quando estava sentado em zazen. E quase todos os mestres da linhagem do zen na China (em seus começos) morreram dessa maneira - a linhagem de Bodhidharma, Eka, Sôzan, Dôshin, Kônin, Enô. Bodhidharma, tendo sido envenenado, conseguiu sentar-se em zazen para morrer. Eka não teve tempo e foi assassinado na rua por budistas ciumentos. Sôsan, autor do Shinjinmei, morreu em kinhin.

Dôshin, Kônin e Enô morreram em zazen. Conta-se que Enô teria dito a seus discípulos, "agora vou morrer", para em seguida sentar-se em zazen e morrer diante deles. O outro Sôzan, autor dos go-i, morreu debaixo de uma árvore em postura de gasshô. Um outro mestre, Shikan, morreu de pé. Há uma história de um monge que morreu sobre a cabeça e não caiu... Sua irmã, uma monja, encontrou-o no dojo de cabeça para baixo. Uma hora mais tarde, quando regressou, ele continuava sobre a cabeça... Ela então compreendeu que ele estava morto e o empurrou dizendo, "Pare com as suas brincadeiras!", e ele caiu...

Todos esses mestres que ensinaram até a sua morte, não estavam cercados nem de suas mulheres, nem de seus filhos, mas de seus discípulos. Sua própria morte foi um ensinamento. Basui, da linhagem Rinzai, morreu em 1327 no Japão, aos 60 anos em postura de lótus. Logo antes de morrer, disse aos seus discípulos, "Não se deixem enganar [por suas ilusões, por seus bonnô]. Observem diretamente: O que é?"

Essa maneira de morrer, sentado ou de pé, não é uma ação especial, não tem nada a ver com algum poder sobrenatural. Trata-se simplesmente de nos servirmos inconscientemente do vigor e da força do zazen. Morrer em zazen quer dizer também morrer de seu pequeno ego. Mestre Daicho Sokei fala em um poema sobre as mortificações às quais Buda se submetia antes de seu despertar:

"Sob suas pernas cruzadas, a cada ano o junco se reverdecia.
Ele se tornou uma criatura tão lamentável que não podia mais viver sua morte".

Sem vida, ele não podia mais viver sua morte.

Ao fim, pouco importa a maneira que esses mestres morreram. O que conta é que, graças à sua prática contínua e a seu karma, eles puderam funcionar completa e inconscientemente, e morrer naturalmente, daquela maneira, como viveram. Nada mais.

15 agosto 2011

Lua cheia



Nesta noite
ninguém pode deitar-se:
lua cheia.
(Bashô)

14 agosto 2011

Zazen

Fukanzazengi - 37º Comentário de Coupey

Ao terminar o zazen, devemos mover vagarosamente o corpo, e levantar-nos calmamente. Não devemos nos levantar, ou mover, bruscamente ao término do zazen. Com a força do zazen, se torna possível transcender a diferença entre “comum” e “sagrado” e podemos ganhar a habilidade de morrer enquanto fazendo zazen ou enquanto de pé.

A maneira de nos levantarmos após o zazen é muito importante. Para levantarmo-nos, devemos colocar as duas mãos sobre nossos joelhos, polegares para cima e fechados no interior dos punhos (isto é também um mudra, que representa a paz). Balançamo-nos para a direita e para a esquerda várias vezes em movimentos de amplitude crescente, depois expiramos fundo, uma ou duas vezes. E para levantar, pressionamos o solo com o indicador dobrado.

Mestre Deshimaru fazia uma observação em relação às pessoas que caem no começo do kinhin, o que é bastante frequente quando se começa a praticar. "Essas pessoas, dizia, não estão acostumadas. Seu sistema nervoso autônomo não está completamente regulado. Não é apenas a dor que é a causa, é que elas não conehcem o método de se levantar depois do zazen". Ajeitamos o zafu, apertando-o com as mão contra o solo e, ao mesmo tempo, estendemos fortemente os joelhos - este ponto é muito importante, sobretudo se temos problemas com as pernas ou joelhos. Certamente não devemos nos levantar nem muito lentamente, nem muito rapida ou bruscamente.

Quando o zazen termina, evidentemente não é indicado que nos apressemos ou nos ponhamos logo em seguida a falar. Tanto quanto possível, é melhor permanecer calmo e silencioso. Se, depois do zazen, encontramo-nos sós em nossa casa, isto não é difícil. Mas quando nos encontramos todos juntos é difícil não falar, pois não paramos de nos estimular mutuamente, essa alegria e essa liberdade de expressão sendo um dos efeitos do zazen.

Em todo o caso, esse não é o nosso ensinamento. E atualmente, todos os dojos, tornam-se mais estritos nessas questões. Penso mesmo que acabaremos por proibir inteiramente aos praticantes de conversarem entre si nos sesshins, como já ocorre no Japão e em várias sanghas... 

De todas as maneiras, cada um deve ser livre de fazer o que quiser, desde que não atrapalhe os outros. E, ainda que atrapalhe... então? Talvez seja bom ser atrapalhado. Mas não no dojo, eis a regra principal à qual devemos nos ater.

07 agosto 2011

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto


Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza.
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!
(Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, 1914)

06 agosto 2011

Fukanzazengi - 36º Comentário de Coupey

Pois é preciso saber que neste momento preciso, o verdadeiro Dharma se manifesta e que, desde o começo, afastamos a frouxidão física e mental, e a distração.

Não mais frouxidão física e mental, não mais distração: esses são os benefícios do zazen (que podemos constatar desde o início, isto é, assim que adotamos a postura). Isto nos remete a dois dos "dez méritos infinitos do zazen". O primeiro, os cinco órgãos dos sentidos retornam à sua condição de calma espiritual. O segundo, a mente se purifica. Quando estamos nessa postura completa - com uma posição perfeita do corpo, uma respiração profunda e uma mente que não pousa sobre nada - hoje em dia, como há dois mil anos atrás, como poderíamos dizer que o Dharma não se maneifesta?

As últimas palavras dessa frase nos dizem que se adotamos a postura correta, com a mente correta, a frouxidão física e mental e a distração desaparecem. Isto quer dizer nem kontin nem sanran. Kontin é o estado de torpor, adormecimento da consciência, que faz com que nos tornemos cansados mental e fisicamente. Sanran é a dispersão, a distração, a falta de concentração. Esses dois estados, que podemos experimentar durante o zazen, são obstáculos à prática do Caminho. Todo o mundo tem uma certa tendência a cair num ou noutro, mas com a prática contínua, sanran e kontin podem desaparecer completamente. Eu falo por experiência própria. Durante anos eu dormi durante o zazen, depois, durante anos, eu ficava disperso, distraído, sempre os pensamentos, o inconsciente, o passado acumulado...saíam durante o zazen. Hoje em dia tudo isto acabou, pelo menos eu espero.